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100 dias não são o bastante, mas podem ser o que nos resta

Recuperar um país dos escombros é um desafio. Refazer o essencial é obrigação. Mais complicado é desfazer estruturas que comprometiam a qualidade política e administrativa do país

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA10 de abr. de 237 min de leitura
Reunião Extraordinária do Conselho Nacional de Política Energética em 17 de março. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Carlos Melo, para Headline Ideias10 de abr. de 237 min de leitura

A palavra bastante tem sentidos diversos. Pode ser um adjetivo, significando “o que basta”, o “suficiente”. Pode ser advérbio, com sentido de “muito”. Crianças criam neologismos: quando perguntadas o quanto desejam de um doce, respondem “bastantão” – é seu superlativo, na língua das pessoas normais. Bastante no mais alto grau. A questão de o quanto um governo realiza em determinado período pode ser analisada por essa lógica: fez “o suficiente”, fez “muito”, foi “superlativo”?

Também pode ser nada disso. De maneira constrangedora, governos ficam aquém do bastante-suficiente. São seu contrário, fazem “pouco”. Ou tornam-se o superlativo às avessas: destroem, destoam e destroem, num processo negativo, sem nada colocar no lugar. Legam um danoso déficit em todas as áreas. Exterminadores do futuro, comprometem até o passado.    

O melhor balanço dos cem dias do governo Lula foi feito pelo jornalista Elio Gaspari, em sua coluna na quarta-feira, 05 de abril, que precedeu o marco simbólico e limitado dos 100 dias. Da atual administração, nada disse, mas recordou o que foram os 100 primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro. Resumindo Gaspari (os termos são meus), eles foram o contrário da “destruição criativa” de Joseph Schumpeter: foi um período de “destruição infame”, avassaladora, de sentido tenebroso.

"Bastantão"  

Assim, por lógica, na comparação com Bolsonaro Lula teria feito “bastantão”. É isso que, até aqui, o justifica para parte de seu eleitorado: não ser Bolsonaro e começar a reverter o processo de “múltiplas destruições” – democrática, ambiental, científica, econômica, fiscal, civilizatória e etc – do governo anterior. Sim, alguns de seus eleitores mais exigentes podem se sentir decepcionados. É o caso do escritor Paulo Coelho, por exemplo. Mas dificilmente estarão arrependidos: sob sua ótica, a alternativa no segundo turno era impensável.

E, na comparação, não foi mesmo pouca coisa. Não se tem na história do país um contexto em que um governo assumisse após um processo tão desorganizador e nocivo. Recuperar o Estado e suas políticas públicas fundamentais é tarefa sine qua non. O princípio dos princípios. Lula e seus ministros têm pelejado nesse sentido.

Dito isto em seu benefício, cabe avaliar se o que Lula fez em 100 dias de governo foi o bastante advérbio (muito), o bastante adjetivo (suficiente) ou se, protegido por esse escudo, ficou no antônimo de bastante: ficou devendo. 

O desafio

Recuperar um país dos escombros não é tarefa simples. Mas, convenhamos, é óbvio como desafio. Refazer o essencial que foi desfeito é obrigação. Mais complicado é refazer um processo desfazendo estruturas que desde sempre comprometiam a qualidade político e administrativa do país. De modo tanto quanto possível, buscar a recriação perfeccionista, corrigindo erros. E ainda, ao mesmo tempo, olhar para frente e sinalizar para o bom futuro.

É fato: o desafio de refazer o sistema político brasileiro corrigindo seus erros, minimizando o poder do patrimonialismo, do corporativismo e do clientelismo é trabalho para Hércules. Compreender o presente de revoluções tecnológica, econômica, social e política é mais uma tarefa para o semideus grego. E, depois de tudo, encontrar soluções e apontar para o futuro, talvez seja coisa de hierarquia mais elevada: desafio para Zeus.

Lula não é Hércules tampouco Zeus. É mortal. E, às vezes, precisa ser lembrado disso. Mas, o desafio histórico que o colocará à prova é inescapável. Seu propósito não pode ser apenas refazer políticas públicas preservando uma penca de vícios imemoriais. Refazer um governo estreito e rançoso, sem buscar renovar os ares de um processo em muitos pontos fétido, pode, ao final, ser frustrante. Seria a decepção homérica para os Paulos Coelhos. 

Tentar algo mais parece ser vital. Mesmo nas condições adversas – econômica, política e administrativa – em que recebeu o governo. Conduzir processos de renovação, remoçando gente, recriando práticas, com, pelo menos, alguma melhora qualitativa é a tarefa para além do básico medíocre. Ser superior não em relação a Bolsonaro, mas em comparação consigo mesmo.

O sistema político

Ainda que a eleição tenha dado maioria incontestável à direita e tornado a direita fisiológica, o Centrão, o centro do jogo político entre Executivo e Legislativo, o país precisa discutir seu sistema político. Ele não apenas envelheceu, na verdade é um moribundo com sinais vitais preservados, fenecendo em vida, sem permitir que o novo se desenvolva. Para além das respostas pomposas e convencionais, uma avaliação da “qualidade de nossa democracia”, como diria o Professor José Álvaro Moisés – saudades do amigo –, é fundamental.

Há 20, 30 ou 40 anos, dividia-se os parlamentares brasileiros entre “Alto Clero” e “Baixo Clero”. Os primeiros, aqueles que influenciavam pela presença política, possuíam visão de futuro e capacidade de organização. Os demais, ao contrário, políticos paroquiais que sobreviviam do fisiologismo e do clientelismo. 

Hoje, o termo “Baixo Clero” desapareceu da crônica do jornalismo e da análise científica: talvez, pelo fato de seu oposto, o “alto clero”, não mais existir. Com tristeza, pouco antes de sua morte, disse-me Ibsen Pinheiro que a vida parlamentar, no geral, teria se resumido à 1) “liberação de emendas”; 2) ao “cargo no governo”, 3) à “visita às bases”. Deputados e muitos senadores nada mais são do que vereadores federais.

Nesse ambiente, prolifera a voracidade fisiológica. Nos bastidores, utiliza-se o termo “taxista”, partidos e políticos que “cobram por corrida”, sem compromisso com projetos ou ideologias. É claro que isso compromete a saúde geral das políticas públicas, da boa execução de orçamentos, do sentido republicano da política. Submete governos ao tacão dos processos de impeachment, amarra suas mãos.

Que fazer: Lula deveria enfrentar Arthur Lira e seus rapazes de peito aberto? Dizem que porco-espinho deve ser comido “com muito cuidado”. E, o caso é, sim, de um grande porco-espinho. Não convém bravatas ou precipitações. Enfrentar a tarefa requer atenção e habilidade. Mas, mais que isso, “disposição” para enfrentar o desafio. 

Aristóteles, o grego preceptor de Alexandre, aponta em sua “Ética” que a disposição é a primeiras das virtudes políticas. Depois, viria a temperança – que ele chama de “mediedade”. Nem o pouco, nem o muito: apenas “a justa medida”.  Qual a justa medida das transformações postas em desafio para Lula?

Poderia começar por uma política mais ampla que aliados de primeira hora. Pela busca da sociedade democrática, pelo diálogo com setores que aceitariam uma aliança com visão de futuro. Pelo envolvimento da sociedade, muito além do corporativismo. Por uma comunicação serena, aberta e pragmática. Fazer Política, na melhor acepção da palavra.

Em resumo dos 100 dias

Nada disso parece estar sinalizado. Nesses 100 dias, a política de Lula tem se voltado “para dentro”. Limita-se aos aliados de primeiro turno, admite as idiossincrasias petistas e suas guerras por espaço e poder. Complica-se na irritabilidade do presidente. Perde-se numa política de comunicação estreita. Por fim, pelo menos de público, parece se resignar à inevitabilidade do Centrão.

Sem uma solução para o sistema político, pouco se fará. Mesmo que se descubra as chaves do futuro, faltará apoio amplo para aprovar o que quer que seja. A alternativa tão e simplesmente será consultar os taxistas sobre quanto será mais uma corrida. Por ligeira que seja e a qualquer horário, é sempre “Bandeira 2”.  

É cedo para avaliações peremptórias. É certo que o governo Lula tem algo por volta de 1.360 dias pela frente. Ele será o que seus protagonistas quiserem e as circunstâncias, ao final – e não de princípio –, permitirem. Ele será o que o gênio político ousar inventar e construir fora do claustro do garrafão do sistema político. 

Balanços de marcos temporais são um vício de governos e da imprensa. Os governos aproveitam para bater o bumbo, fazer marketing daquilo fizeram ou que deveriam ter feito. À imprensa agrada a sanha por balanços e avaliações que despertada nos leitores, mais ou menos ansiosos para "saber" se os governos estariam no bom ou mau caminho. Tudo bem, consolidou-se como uma tradição fazê-los. Vamos a ele.

Até aqui, o governo Lula fez “bastante” (muito) na comparação com Bolsonaro. Mas, não “o bastante” (suficiente) em relação aos seus desafios. Cedo para acusá-lo ou absolvê-lo. A história gira. Daqui a quase três anos e meio avaliaremos se o governo Lula foi apenas o bastante-suficiente para superar Bolsonaro. Se, pelo menos, tangenciou o superlativo, dando conta dos principais desafios – o “bastantão”. Ou se foi tão somente o que nos restou em 2022.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

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