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A banalização do escândalo

Para colunistas, "teimosia" de eleitores de Bolsonaro em aceitar que moralidade piorou com eleição do ex-presidente levou "à teimosia, à cegueira, à dissimulação. Por fim, à permissividade"

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA31 de ago. de 237 min de leitura
O ex-presidente Jair Bolsonaro durante o evento Turning Point USA, no resort Trump National Doral, em Miami, em 3 de fevereiro de 2023. Foto: Joe Raedle/Getty Images/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias31 de ago. de 237 min de leitura

No domingo, 27 de agosto, O Globo publicou o artigo “Patrimonialismo no Sofá”, escrito por mim. O que disse por lá é mais ou menos o que tenho repetido neste canal da Headline, em que semanalmente tenho encontro marcado comigo mesmo e com piedosos leitores. Questões e aspectos de um tempo bastante estranho.

Em resumo, tratava do alívio do país ao ter se livrado de Jair Bolsonaro. Recorrendo à conhecida alegoria, o defini como o “bode na sala”.  Mas, a despeito disso, a verdade é que persistirem problemas antigos, anteriores a Bolsonaro. O patrimonialismo, principalmente. Se o “bode foi retirado da sala”, o patrimonialismo “acomoda-se confortavelmente no sofá”. A sociedade deveria preocupar-se com isso. Foi este o recado.

Inúmeras mensagens chegaram pelo WhatsApp. Em geral, elogiosas. Agradeço a generosidade. Chamou atenção a recorrência em qualificar o texto como “corajoso”. É esse adjetivo que me faz voltar ao artigo. “Corajoso” por quê?  Não suponho que seja o caso, ainda não se enquadre no oposto de coragem, a "covardia” ou a “temeridade”.

O adjetivo diz pouco a respeito do artigo ou dos generosos leitores. Revela muito, no entanto, do Brasil desta quadra histórica, do estado de torpor da sociedade.

Não se trata de coragem. Como quase todos, tive medo. Recebi ameaças pelo que escrevi e disse no mister de analisar o governo e os tempos Bolsonaro. Coisa torpe de gente vil. Houve momentos de temer pela família e por mim. Humano, demasiadamente humano. Foi um pesadelo.

Mas a eleição despachou Bolsonaro e o 08 de janeiro, ao que tudo indica, foi sua Waterloo. Pelo menos a princípio, a democracia mora aqui. Criticar os Poderes – no artigo, as tintas se concentravam no Legislativo – deveria ser (e é) trivial. Banal porque, afinal, não faltam motivos para críticas.

Nos últimos meses, a postura da maioria da Câmara dos Deputados, em especial, tem sido questionável: o fisiologismo fulgura nos céus do país. Apontá-lo não é questão de coragem. É, antes, de disposição de espírito. Deveria ser obrigação cívica.

Um processo de ilusões e decepções

A última década foi de lascar. As jornadas de 2013 a abriram como o início de uma era de desgaste da política e de ascensão de um farisaísmo crítico. Aparentemente, o movimento que foi para as ruas seria uma espécie de revolução moral sobre a inegável imoralidade na política nacional.

Mas despertou seu excesso: o moralismo. Fez-se a fúria e uma generalização despolitizada. Clichês e senso comum abraçaram oportunistas que, paradoxalmente, deveriam ser o alvo das bandeiras que empunharam hipocritamente.

Em “O Leopardo”, de Luchino Visconti, Tancredi Falconeri (Alain Delon) é cortante: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. É o espírito do livro de Giuseppe di Lampedusa. No Brasil de 2013, as pessoas não sabiam que, ao final, tudo deveria mudar para que tudo retrocedesse a um passado ainda pior. O país voltou à Idade Média, aos tempos de Colônia.

Também a Operação Lava Jato surgiu como terremoto que revolveria camadas abaixo da terra. Esquemas foram revelados. Mas o açodamento e os projetos pessoais jogaram no lixo a oportunidade de purgar pelo menos parte do sistema político. Cuspiu-se para o alto. O resultado é sabido: cresceu a descrença.

Já a eleição de 2014 não terminou e resultou no desastre de 2018. O grau de agressividade da polaridade de então, PT e PSDB, foi inédito. No meio da rinha, Marina Silva foi vítima de covardia de ambos os lados. Um ressentimento mútuo e múltiplo ficou. O impeachment de Dilma Rousseff nada resolveu.

Realidade e ficção se confundiram

Pelo contrário, afetou o respeito às regras e atingiu o pacto democrático de admissão dos resultados eleitorais. Mitos da ditadura foram ressuscitados em discursos descaradamente tirânicos. Para os mais oportunistas, abriu-se a possibilidade de colocar o presidente da República permanentemente sob alça de mira.

De qualquer forma, pelo menos até o final do meio mandato de Michel Temer, justa ou injustamente, a indignação soava em sirenes. O desplante ofendia, dava ganhas de revolta, tomava as atenções, a indignação durava dias e constrangia o sistema político.

Dilma padeceu por “pedaladas” controversas. Também Michel Temer amargou seus suplícios, – por duas vezes foi submetido ao escrutínio do impeachment, na Câmara. Em ambos os casos, foram questões menos substantivas do que se viu nos anos seguintes, com Bolsonaro. Mas, a esse tempo, escândalos ainda afetavam. A opinião pública, certa ou errada, botava medo no sistema político.

Aceitar que com a eleição de Jair Bolsonaro não apenas a moralidade não se instaurara, como até piorava, não foi fácil para quem lhe deu o voto em 2018. O arrependimento seria normal. Mas a dificuldade de reconhecer erros levou à teimosia, à cegueira, à dissimulação. Por fim, à permissividade. Ao entrar nesse campo, o retrocesso estava dado.

Tudo passou a ser permitido e os eufemismos explodiram: Bolsonaro era o “autêntico”; ignorância significava “uma pequena confusão com dados”; apropriação de bens públicos, “prerrogativas de mandato”; crimes contra a democracia, “liberdade de expressão”; o golpismo passou supostamente a figurar entre “as quatro linhas da Constituição”.

A chantagem foi chamada de “negociação”; o patrimonialismo tornou-se legítima barganha em nome da “governabilidade”. “Política”, como dizem, aviltando seu significado.

Ao perder o sentido da Política, assumiu-se seu oposto, a “politicagem”. Tudo se perverteu. A realidade assumiu ares de ficção. Mesmo a sorte, o destino, a fortuna ou Deus foram substituídos por um tal “roteirista” maluco da novela Brasil. O discernimento desmanchou-se no ar.

Escândalos de rotina

Desnecessário repetir o que foram os quatro anos de Jair Bolsonaro. Mesmo para um país onde qualquer absurdo tem precedentes, o bolsonarismo inovou. Foi criativo em bizarrices de todos os tipos, quebrando recordes de falta de decoro, protegidos por segredos oficiais por cem anos. A “governabilidade” nada mais foi que mera blindagem.

O maior problema do período Bolsonaro foi instituir a banalidade do mal. Em qualquer hora, em qualquer canal, uma sandice nova surgia como um reclame. O disparate corriqueiro como um bueiro aberto na calçada de uma cidade malcuidada. Cotidiano e vulgar, como caminhões de lixo ou de gás, fazendo barulho nas manhãs da periferia. “Escândalos de rotina”, deveriam ser uma contradição. Pelo menos em termos.

Uma longa e sofrida década de crises, conflitos, desacertos e vergonhas que, gradativamente, anestesiaram a sociedade agora apática. Disse-me um amigo que mesmo parte da elite com algum talhe intelectual “parece observar a tudo com distanciamento antropológico”. Como se fizesse a etnografia do desastre.

Parece um “major”

Fenômeno que não se manifesta apenas no Brasil, o mundo vive profunda crise de liderança política capaz de intervir, conduzir processos e transformar a realidade. Pelo menos, é o caso das democracias. A acomodação à bizarrice se estabeleceu. Na “grande democracia”, os Estados Unidos, um Donald Trump arrecada fortunas com as vendas de sua foto de “presidiário fichado”.

Site Trump Save America JFC, vende mercadorias com a foto do ex-presidente dos EUA Donald Trump. Foto: Stefani Reynolds/AFP
Site Trump Save America JFC, vende mercadorias com a foto do ex-presidente dos EUA Donald Trump. Foto: Stefani Reynolds/AFP

Movimentos sociais vinculados à política strictu sensu vivem dias difíceis. Com justificadas razões, militantes se dividiram em inúmeros grupos identitários. Importante repetir: com justificadas razões. Mas seu efeito é a fragmentação de forças, como aponta o cientista político norte-americano Mark Lilla, professor de Columbia. Faltam referências políticas capazes de unificar lutas, sem prejuízos das partes.

Evidente que a fragmentação também é um (bom) reflexo da democracia: a diversidade e a liberdade de organização. Contudo, unificado, o conservadorismo reacionário alia-se ao oportunismo e dá vida ao que Sérgio Abranches denominou “governantes incidentais”, base das autocracias mundo afora.

Raro encontrar capital humano mobilizado para enfrentar o status quo e transformar a realidade. A desilusão aliada ao ceticismo e ao individualismo hedonista se expande. Mesmo sofrendo com as vicissitudes da realidade e os desacertos da política, as pessoas recolhem-se às suas vidas privadas. O “homem (e a mulher) público” desapareceu.

Não é coragem o que falta, mas “disposição”, virtude essencial da política. Se nada há para contê-lo, o gás do oportunismo se expande. Ninguém o afronta ou impõe a indispensável contenção. Sem gastar energia, como disse no artigo, o patrimonialismo acomoda-se confortavelmente no sofá da sala. Como na canção de Luiz Gonzaga, “agora tá gordo que parece um major”.

* Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

 

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