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A jurisprudência do Supremo no caso Lira

Presidente da Câmara rivaliza com muita gente, comanda um campo hegemônico na casa, dá as cartas da agenda e empareda o presidente. Todo poderoso coleciona inimigos. Mas todo forte tem fraquezas

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA8 de jun. de 2312 min de leitura
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, encontra-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso Nacional em 1º de janeiro de 2023. Foto: Mauro Pimentel/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias8 de jun. de 2312 min de leitura

Atendendo um pedido do deputado Arthur Lira, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) arquivou denúncia feita contra o presidente da Câmara. Houve reviravolta no caso, pois os magistrados do grupo já indicavam tendência de dar sequência do processo. Alguns, inclusive, mudaram votos. Teriam sido sensíveis à solicitação da Procuradoria Geral da República – o que nem sempre ocorre, mas vá lá. 

Certa polêmica permanecerá, não é de se descartar que a decisão tenha sido mais política do que jurídica, embora, é claro, os envolvidos digam o contrário. O fato, porém, vai além da decisão dos ministros. De um modo ou de outro, a decisão joga água na fervura e arrefece o calor de um contexto que vai armando uma guerra política nos bastidores, com uma espécie de cerco a Arthur Lira. 

O deputado rivaliza com muita gente, comanda um campo hegemônico na Câmara, dá as cartas da agenda nacional e amiúde empareda o governo e o presidente da República. Todo poderoso coleciona inimigos – diz-se que é mais poderoso que Lula, como o foi em relação a Bolsonaro. Quem é assim, cultiva maior quantidade de inimigos do que de aliados. É um forte, sem dúvida. Mas, todo forte tem fraquezas. 

Ninguém admitirá que a invertida policial que vem tomando seja retaliação à expansão desmedida de seu poder. Talvez seja mesmo verdade que nem o presidente Lula, nem o ministro da Justiça, Flavio Dino, tenham nada a ver com isso. Às vezes, as bombas simplesmente explodem: uma dinâmica incontrolável torna o jogo mais arriscado e perigoso e tem-se a antevisão de um acidente ferroviário.

Múltiplos jogadores

Além do presidente da República, o jogo em que Lira se movimenta envolve múltiplos e variados atores: Polícia Federal, Ministério Público, Justiça, partidos, Poderes e desafetos individuais. Não há organização monolítica: elas possuem contradições, disputas internas e interesses difusos. A beleza da política é que o jogo pode escapar ao controle dos caciques. 

Ações individuais somadas assumem dinâmica coletiva e controlam o processo. Quem controlará cada ator que de algum modo tem Arthur Lira sob mira? Não se pode afirmar que isso interfira no andamento “normal” da política porque, na política, é também normal que guerras e disputas desse tipo se desenvolvam, mais ou menos estridentes. 

O poder descomunal que adquiriu a partir da fragilidade do governo Bolsonaro e a super potencialização do Centrão fizeram de Arthur Lira um dos mais fortes presidentes da história da Câmara dos Deputados, pelo menos em tempos recentes. Nem mesmo o grande Ulysses Guimarães – simultaneamente presidente da Câmara, da Constituinte e do PMDB, então o maior partido – teve tanta discricionariedade e liberdade de ação. 

Lira é uma espécie de Darth Vader, um Thanos, numa terra sem Jedis, sem super-heróis Vingadores capazes de fazer voltar o tempo. Como em todo enredo de filme de ação, procura-se a fraqueza do vilão, supostamente, sua criptonita estaria em supostos processos de corrupção. 

O fato é que no auge de sua maior exibição de poder – alterar medidas provisórias de formação do governo e impor outras derrotas ao Executivo – Lira nota que também tem contra si um Império que contra-ataca. 

No processo de investigação que apura o fato de um aliado seu ter vendido kits de robótica por 420% de ágio, o presidente da Câmara não é investigado. E ele faz questão de reafirmar isso. Não seria de outro modo. Mas, o fantasma da Polícia Federal passeia ao seu redor. Até porque, descobriu-se agora, o deputado indicou nada menos do que R$ 39,2 milhões para compra do equipamento com a empresa envolvida.

Esse dinheiro até pode ser coisa pouca perto do montante descomunal que Arthur Lira administrou politicamente – e ainda administra – como senhor todo-poderoso do orçamento secreto. Mas já é alguma coisa, pois quem pode o muito também pode o pouco.

Já no Supremo Tribunal Federal tramitava a denúncia de 2019 contra o hoje presidente da Câmara, acusado de ter recebido R$ 106 mil de propina do presidente da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos. Outra coisa pouca, 106 mil. Novamente, quem pode o muito pode o pouco. Eram processos de pressão simultânea que iam aumentando a pressão geral do ambiente.

Ao entender que a denúncia de um doleiro, como delação premiada, não tem credibilidade, o Supremo abaixou a temperatura e diminuiu essa pressão. Mas, há várias chamas que continuam acessas.

Um cerco?

A “coisa” pode ser pouca, mas não é bobagem. Nas disputas pesadas, nas guerras de poder, pingo é letra e tudo serve para alvejar o adversário desde que possua potencial para forçar-lhe um recuo ou fazê-lo sair do campo. Mesmo com o entendimento do STF, há um recado do sistema jurídico e policial: Lira tem poder político até mesmo de coagir o Poder Executivo, mas não pode tudo.

Em paralelo a isso, há também a guerra local: a disputa pela capitania de Alagoas, travada entre as oligarquias Lira e Calheiros. Quem conhece um pouco da história daquele estado sabe que essas disputas não encontram trégua, e nunca acabam bem – se é que um dia acabam.

Há um cerco e isso é evidente. Não é evidente a participação ou não do presidente Lula e de seu governo. Mas, está claro que algo pode fechar seu circuito: o “Deep State” nacional, a autonomia da máquina instalada no Estado, o establishment, agentes políticos dispersos e ocultos no sistema, ou desafetos declarados. O cerco é, pelo menos, plausível.

“Coisa é pouca”, Al Capone foi preso por sonegação fiscal. O que mais interessa nesse jogo político é, sem dúvida, a fragilização do adversário, sua anulação, se possível. Esporte é Saúde. Será? Quem conhece a história do Brasil recorda de pelo menos um punhado de casos do gênero que não acabaram bem.

Guerras que terminam mal

Começando por citar o caso Lunus, ocorrido há 20 anos, que retirou Roseana Sarney da disputa pela presidência da República. Note: Sarney. Na ocasião, José, seu pai ex-presidente da República, era homem forte no Senado, vindo a ocupar sua presidência na Legislatura seguinte. Em si só, uma instituição: Sarney. Mas, a dinheirama fotografada sobre uma das mesas da empresa de Jorge Murad, marido de Roseana, pôs fim ao sonho da candidata muito bem colocada nas pesquisas eleitorais.  

Também liquidou a aliança entre PSDB e PFL que sustentava o governo de Fernando Henrique Cardoso e que daria enorme condições de competitividade a qualquer um que pudesse unificá-la e viesse a representá-la na corrida eleitoral de 2002. 

No primeiro momento, José Serra, candidato a candidato do PSDB, foi acusado de estar por detrás da ação policial. Objetivamente, Serra se favoreceu do caso, anulou o jogo do PFL, de seus adversários internos – como Tasso Jereissati, por exemplo – e consolidou candidatura à presidência. Haveria seu dedo na investigação da empresa do genro de José Sarney? Assim como Lula e Flávio Dino, Serra nega.

O caso foi um elemento, se não fundamental, muito importante no jogo daquela eleição. E o fracionamento da aliança de FHC, que havia se rompido também na Câmara dos Deputados, com as digitais de José Serra, enfraqueceu o governo ao mesmo tempo que ampliou o campo de possibilidades da oposição e seu candidato, Luiz Inácio Lula de Silva, do PT. 

Disputas desse tipo, não importam de onde surjam, sempre têm efeitos mais amplos que os propósitos iniciais. Têm desdobramentos políticos, nem sempre previsíveis. Não raramente, resultam em contrafinalidade, tiros no pé. É preciso cautela para manejar esse tipo de canhão.

O mensalão

Diz-se que a revelação do escândalo do Mensalão, sua CPI e os processos no Supremo que levaram um magote de políticos para a cadeia – vários petistas – teve origem num desses jogos desastrados. 

Ao que tudo indica, pretendia-se retirar Roberto Jefferson, então todo-poderoso de um partido aliado, o PTB, do circuito de “negociações heterodoxas” e “valores não contabilizados” existente entre o Poder Executivo e os partidos da base. Resolveram jogar aos leões um dos aliados de Jefferson, nos Correios, como forma de desgastar o deputado. 

Mas “não contavam com sua astúcia”. O instinto belicoso e estilo Rambo de Jefferson não se fez de ontem para hoje. Sua permanente disposição de dobrar apostas vem de muito tempo. Em 2005, já detonava os coletes de explosivos que vestia, ateava fogo às próprias vestes e corria para abraçar inimigos. Quase mandou pelos ares todo o governo, inclusive o presidente da República. 

Uma promissora geração petistas morreu ali: processos, prisões, esculachos nas ruas, fim de brilhantes carreiras políticas. O estabelecimento de um vazio que persiste até hoje, nasceu de um plano besta.

Dilma Rousseff cumprimenta o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, na abertura do ano legislativo no Congresso Nacional em 2016
Dilma Rousseff cumprimenta o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, na abertura do ano legislativo no Congresso Nacional em 2016. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Eduardo e Dilma

Outro evento entre os clássicos da galeria de desastres da política nacional foi o embate de Dilma Rousseff com Eduardo Cunha, em 2015. Tudo começou com o fato de nem Dilma Rousseff nem o PT terem compreendido a fragilidade com que saíram da eleição de 2014, vencida por pequena margem de votos sobre Aécio Neves do PSDB – pouco menos de 3,5 milhões, mesmo assim, 1,6 milhão votos a mais que Lula obteve sobre Bolsonaro. Foi uma “Vitória de Pirro” para qual resolveram tocar a marcha triunfal. Napoleões de Hospícios assumiram o centro da cena.

Os “conselheiros e estrategistas” da presidente da República a fizeram acreditar que seria hora de substituir o PMDB como principal parceiro no Congresso. Cansados do fisiologismo do aliado, pretendiam substituí-lo pelo PSD, de Gilberto Kassab, partido em aparente ascensão, que no entender dos “gênios” do Palácio seria facilmente controlado por menos argumentos de persuasão que o Poder Executivo utilizava para o PMDB. 

O primeiro passo seria não permitir que Eduardo Cunha, então inconfiável líder do PMDB, assumisse a presidência da Câmara.

Desprezaram a força de Cunha, que teria ajudado a eleger, naquele ano, quase duas centenas de parlamentares que estariam sob sua influência. Jogaram pesado para derrotá-lo no plenário. Não conseguiram. Depois, recusando-se a uma reconciliação, a presidente declarou negar-se a fazer qualquer tipo de “toma lá, dá cá”. 

Inteligente e trabalhador – “Ah, se usasse sua genialidade para o bem!” – Eduardo Cunha rapidamente dominou o plenário da Câmara, atraiu partidos da própria base do governo e, em retaliação, entabulou uma “pauta bomba” que colocou o governo contra a parede do Congresso e do mercado financeiro. Agravou a já precária situação econômica do país.

Na Câmara, o PT não apenas não recuou, como se negou a qualquer acordo. Partiu para cima de Cunha, jurando-o de morte (política) ao levar à Comissão de Ética denúncias de corrupção em que estaria envolvido. De fato, havia uma série de casos rumorosos contra Cunha, que era constrangido pela imprensa e pela opinião pública. À época, sob encanto do “lavajatismo”, a sociedade parecia ou menos entorpecida ou mais suscetível à manipulação.

O presidente da Câmara percebeu sua precariedade: seus aliados iriam com ele até a sepultura, mas não se jogariam. Não haveria caminho de volta: encurralado, partiu para cima do PT e da presidente. Aproveitando que as ruas estavam incendiadas contra a política, contra o PT e contra Dilma, leu pedido de impeachment que colocou fim à história daquela eleição. 

O desenlace final é conhecido: Eduardo e Dilma morreram abraçados. A presidente voltou para casa, o deputado foi para a cadeia – para onde Lula seguiu meses mais tarde. Jair Bolsonaro venceu a eleição de 2018. E, talvez, encare, ele também, um período forçado de reclusão daqui a algum tempo. O país se desorganizou brutalmente.

Um jogo sempre perigoso

A interação de interesses individuais ou dispersos pode ter resultados assim: se cada um fizer o que entende ser melhor para si, constrói-se o péssimo coletivo. O jogo é sempre perigoso e pode trazer revés. Por isso, a política carece de cautela, habilidade. Jeito, não força. Prudência, arte da política de não ficar nem aquém nem além da coragem. Tão prejudicial quanto a covardia é a temeridade, ensinou o velho Ari (Aristóteles).

Essas virtudes não são triviais nesses dias. Aliás, são raras, raríssimas, na atualidade. 

O perfil de Arthur Lira está, por exemplo, posto à prova. Matreiro, aparentemente indica ser mais frio e menos vaidoso que Eduardo Cunha, seu mestre. Menos explosivo que Roberto Jefferson e menos desastrado que José Serra. Conseguiria “manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”? 

Difícil responder. Depende do que lhe passa pela alma, a pessoa que é e quanto lhe domina o rio de sua aldeia: “...o Tejo não é mais bonito que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia” (Pessoa).

O que corre nas veias de Arthur Lira é o rio da aldeia do velho estado de Alagoas. Terra dos Collor e dos Góis Monteiro, bom não esquecer. Uma “googlada” rapidinha pode explicar o significado disso. Velhos do rio, Lira e Renan seriam os novos personagens desse roteiro repetido desde sempre? Como Lula se posicionará em relação à guerra: entrará na luta ou se desfiará dos estilhaços?

O fato é que em qualquer cenário, o rio não estará bom para o governo. Tampouco para o país. Embora pescadores de águas turvas existam aos montes, esse tipo de pescaria não é para amadores. 

Impregnado desse conhecer a história, talvez o saber “jurídico” da Primeira Turma tenha avaliado considerar a jurisprudência.

* Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

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