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Fim de recesso: indicações, agenda encalhada, “tiro, porrada e bomba” nas ruas

"A fornalha do sistema, para a qual não há lenha que baste, continuará a tragar a energia do país que poderia ser consumida com políticas públicas mais eficazes"

Carlos Melo, para Headline Ideias
3 de ago. de 2314 min de leitura
Carlos Melo, para Headline Ideias3 de ago. de 2314 min de leitura

Momento de falta de notícias mais quentes, as “flores do recesso” se foram. As notícias e as questões, a partir de agora, serão bem mais concretas e com consequências maiores. O Congresso retoma suas atividades e tudo volta ao turbulento normal. A eterna disputa entre os limites dos cofres públicos e a voracidade comezinha do sistema político, que nunca cessou, sai dos bastidores e sobe às tribunas, ganha as luzes da imprensa.

Sem desviar-se do touro bravo do fisiologismo mais voraz, o Poder Executivo cederá mais alguns anéis e, quem sabe, alguma ponta de dedo. A fornalha do sistema, para a qual não há lenha que baste, continuará a tragar a energia do país que poderia ser consumida com políticas públicas mais eficazes.

Mas faz parte: “o Brasil não é mesmo para 'principiantes', disse o gênio da canção popular.

Mas uma mancheia de questões deve ser discutida antes que a natural vertigem do noticiário de Brasília se reinstale. Encruzilhadas que podem comprometer irremediavelmente a integridade do governo: indicações, encaminhadas pelo presidente, para importantes postos da República. Também especular se a velha agenda fiscal e tributária se fechará para que uma nova se abra. No mais, é claro, o mal-estar explícito na Segurança Pública, que na semana, mais uma vez, se tornou gritante.

Desperdício do IBGE

A imprensa tem especulado em relação às indicações do presidente Lula para a Procuradoria-Geral da República (PGR), para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), que será aberta com a aposentadoria da ministra Rosa Weber e – não é mais especulação – com a indicação do economista Márcio Pochmann para a presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Começando pelo IBGE. É evidente que o nome do indicado não reúne as melhores condições para o cargo: trata-se de um economista que tem alergia a números e evidências. Um rápido Google revelará inglórios embates que travou com Alexandre Schwartsman e Samuel Pessoa. Também outros equívocos são indesmentíveis: presidente do Ipea, Pochmann atritou-se com técnicos de reconhecida qualidade e expressou uma personalidade ideologicamente estreita.

Daí a apontar que o Brasil corre risco de uma “argentinização” de suas estatísticas são outros quinhentos. Insuspeito, Sérgio Besserman, economista que já ocupou o cargo, afiança que a governança do Instituto não permite aventura do tipo. Assim, mesmo que não seja por determinação pessoal – e não indica que não a tenha –, a capacidade de Pochmann fazer estrago, pelo menos por enquanto, parece devidamente contida.

Aqui as questões são outras. A pressão do PT por ocupar cada palmo de espaço do governo, torna o próprio presidente Lula um campo em disputa. Cria problemas onde há paz, a equipe econômica. Também revela a incapacidade de a legenda renovar sua forma de pensar e agir sobre a economia: ao recorrer a visões do passado, o partido diz não saber o que pensa sobre o futuro.

O IBGE seria bom instrumento para prever e alinhavar uma nova sociedade: o que nos tornamos e para onde vamos; dar elementos, números – sim, “números” – importantes para construção de políticas públicas atualizadas com o que ocorre, de fato, no mundo real e em transformação. Governá-lo, no entanto, a partir de clichês – “neocolonial” e “neoliberal” – é anular sua serventia. Avassalar um sistema inteligente à ideologia decadente. É bem menos que “argentinização”, mas, ainda assim, um desperdício e um erro político.

Fernando Haddad, filiado e ex-candidato à presidência da República pelo PT, mostra-se renovado e disposto a transpor barreiras, mas seu partido demonstra não confiar no ministro. Busca cerceá-lo, contê-lo na visão econômica e nas pretensões de futuro político. A luta dos corredores das sedes do partido se transporta para o governo. Soma zero.

E somente no zero fica porque, no episódio, Haddad e Simone Tebet não morderam a isca. A ministra, à parte do desgaste, fez cara de paisagem; tentou ignorar solenemente o fato: “não o conheço”. Não caiu na armadilha de peitar seu chefe, o presidente da República. Deixou o caso passar ao largo e não o tornou maior. Para seu bem e bem do país, manteve-se num cargo cobiçado e preservou a imagem de um governo de pretensa frente ampla.

STF e PGR: encruzilhadas

Já em relação ao STF e à PGR as indicações tendem a ser bem mais decisivas e determinantes para a forma como esse governo e como o próprio Lula passarão à história. A simples cogitação de que o presidente estaria buscando aliados dóceis para os cargos o compromete ao colocar em dúvida qual, afinal, é sua índole e sua visão de Estado e de República.

Mesmo que a indicação de Christiano Zanin para a primeira vaga aberta no Supremo durante o governo passe por questões pessoais, no mínimo, controversas, o fato é que o advogado se transformou num símbolo contra o hoje senador Sérgio Moro e os equívocos cometidos pela Operação Lava Jato. Zanin seria uma escolha “garantista”. Haveria, pelo menos aí, uma escolha legítima ao sugerir um modo de olhar a Justiça. E um álibi político, é claro.

Já com a aposentadoria de Rosa Weber, Lula será testado sob dois aspectos: se manterá a vaga com uma mulher – o que não pode ser critério único, evidentemente, mas é justo e desejável – e se escolherá alguém que, no futuro, não se comporte como aliado incondicional, uma espécie de lacaio presidencial.

Indicação desse tipo, é claro, iria contra a ideia de impessoalidade republicana, contra o sistema de freios e contrapesos, contra a higidez democrática. Seria um lamentável erro histórico que não se justificaria por absurdos cometidos no passado. Se Jair Bolsonaro baixou a régua das exigências desse tipo, Lula foi eleito justamente por não ser Bolsonaro. Não é justo que o imite.

Igual raciocínio se transfere para a escolha do sucessor de Augusto Aras, na PGR.

A condição estabelecida por qualquer PGR, como limite de sua boa-vontade com presidentes, não pode ser a continuidade do projeto de poder de quem o indicou. Pois, findo o mandato, fim do amor; leiloa-se o coração que foi infinito enquanto durou. Oferece-se à nova paixão.

A Procuradoria-Geral da República e o Ministério Público servem à sociedade e a ela devem prestação de contas. São instrumentos do sistema de controle do Poder, não sua alavanca. Têm fundamental papel institucional e democrático. São instrumentos de Estado, não de governos.

Mesmo que seja legítimo que o atual presidente não queira se submeter – na verdade, submeter o país – à lógica de escolhas corporativas, buscar um “Aras para chamar de seu” seria um disparate para quem foi eleito em nome da democracia. Seria um recuo incomensurável no esforço de recuperação institucional do país. A constatação crua, dolorosa e cruel de que o retrocesso dos últimos anos veio para ficar.

Que Lula não escolha um inimigo com agenda política própria ou corporativa, como pode ter ocorrido no passado. Mas, tampouco, submeta sua biografia e o país a um tipo de desgaste que a história julgará muito mais à frente. Julgará e não perdoará.

O presidente e sua equipe precisam compreender que os custos de erros desse tipo, para Lula e para qualquer democrata, são muito maiores do que foram para Jair Bolsonaro, pois já estavam no “preço Bolsonaro”. Para Lula, seriam uma declaração de falência. E é normal e saudável que essas restrições existam.

A agenda da página virada – ou não

No artigo da semana passada, cogitei a possibilidade de a agenda fiscal e tributária ser página virada até o final deste ano. “Se o caminhão não enguiçar no caminho”, disse. Sabe-se, no entanto, dos buracos e perigos da estrada, das deficiências do caminhão e a quantidade de “pedágios” impostos pelo sistema.

Na volta do recesso, um Arthur Lira mais aliviado com seus problemas com a Polícia Federal e com a Justiça, reuniu-se com o Colégio de Líderes e, juntos, resolveram fazer um tipo básico de “Operação Tartaruga”. Enquanto Lula não fizer a reforma ministerial e destinar cargos e orçamentos aos partidos do Centrão, as pistas da Câmara ficarão mais lentas. Ok, é do jogo de pressões.

Mas o que até outro dia figurava nos discursos do presidente da Câmara como exemplos de votações vinculadas ao interesse nacional mudou de estampa.

Na verdade, tanto o arcabouço fiscal quanto a reforma tributária foram aprovados na Câmara por conta de um alinhamento de interesses individuais, particularistas. Houve um régio pagamento pelo serviço. Mas a garantia dessas operações é normalmente curta. A cada votação, há aditamento nos contratos. E novos interesses que querem se alinhar ao interesse do Executivo.

Candidatos a novos aliados, exigem agora os crachás dos ministérios. E parte do orçamento federal. Forjado na negociação sindical, Lula sabe que o ponto de acordo está em algum lugar distante das curvas do desejo de quem demanda e dos interesses de quem oferta. O centrão não terá Saúde, Educação ou Casa-Civil. Mas, o que terá?

Não será qualquer ministério, sem orçamento. Isso não. Mesmo com Lula fortalecido, o preço continua elevado. E é isso o que Lira e seu Colégio de Líderes mandaram dizer: findo o recesso e suas flores, voltam as quedas-de-braço de sempre, os reais atores da política brasileira e seus reais interesses.

“A política como ela é” está de volta: o puxa-estica em que se dão as relações entre Executivo e Legislativo, no Brasil. O problema é que o bom momento da economia depende da superação de uma agenda antiga e antiquada: o descalabro fiscal e os absurdos tributários do país. E Lula depende do bom momento da economia para ganhar autonomia em relação ao sistema de chantagens do Centrão.

A reforma será inevitável, pois não se renunciará às possibilidades de pressão sobre o Executivo em troca de alguns vinténs de cargos e orçamentos somente.

O diabo é que ninguém quer perder e todos querem ganhar. Nas disputas e cotoveladas entre aliados, o presidente terá que arbitrar bem acima de seus auxiliares no Congresso e no Palácio. Mas, isso não depende de sua autoridade ou vontade. Depende da correlação de forças: Lira forte é um Lula fraco e vice-versa.

Lula se fortaleceu nas semanas que antecederam ao recesso porque sua popularidade começou a ascender em razão da melhora do ambiente econômico. Em virtude da enxurrada de suspeitas envolvendo Arthur Lira, no mesmo período, o centrão perdeu o impulso do final do mandato de Bolsonaro e início do mandato de Lula. Ainda assim, tudo pode recomeçar e uma nova rodada de estocadas de um lado e denúncias de outro não pode ser descartada.

Após as férias, a viagem recomeça e é o caso de verificar o estado das baterias do caminhão. Como estarão? A estrada é a mesma, esburacada e sinuosa.

Insegurança Pública

Nesta semana, casos de violência, mortes de policiais, criminosos e, certamente, inocentes tomaram a atenção. De tempos em tempos o inferno reaparece nos noticiários mais sofisticados da TV. Os casos da vez localizam-se em São Paulo, na periferia da cidade litorânea do Guarujá, e no interior da Bahia. Respectivamente, governos do PL e do PT.

Não há monopólio político sobre a violência, tampouco da virtude de buscar domar a autonomia e a fúria das corporações policiais. Se a contagem não disparou, foram, até onde acompanhei, 14 mortos em São Paulo e outros 19 na Bahia. Apenas de supostos bandidos e inocentes. Além dos policiais.

Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas, pressionado pelos grupos que o apoiaram na eleição, definiu o comando da Segurança Pública a partir dos quadros ligados ao bolsonarismo. À parte de qualquer consideração, é justo que nuvens de desconfiança pousem sobre as ações de sua polícia quando o recrutamento dos dirigentes está subordinado a alianças do tipo.

De algum modo, trata-se de uma guerra e, apertado pela imprensa, o governador, naturalmente, defendeu sua polícia. Mas,argumentou que “efeitos colaterais” – mortes de inocentes – são inevitáveis. Quando se perde um filho, o “efeito” deixa de ser “colateral” e passa a ser resultado direto de uma política pública desastrosa.

Ainda que a frase tenha algum suporte racional, ficaria adequada na boca de especialistas, de acadêmicos, que podem analisar os fatos com frieza e distanciamento. O governador está no jogo, se comunica com um lado e outro: os que querem “tiro, porrada e bomba” e os que sofrem, perdidos, com “o diabo na rua, no meio do redemoinho”.

Nesse sentido, a frase soa como admissão de pouco cuidado e, sintomaticamente, rendição à inevitabilidade da tragédia. Governos são eleitos para proteger a todos. Para quem pretende se deslocar gradativamente para o centro político, Tarcísio de Freitas derrapou na curva.

A economia, o desemprego, a inflação são problemas sérios. No longo prazo, causam enorme estrago social. Mas, nada é mais dramático e urgente que a Segurança Pública. Seu descontrole leva ao pânico, retira pessoas do convívio, afasta investimentos. Para o cidadão comum desprotegido e exposto a áreas com esse tipo de risco, nada denota mais o desamparo e a falta de Estado.

O sistema político ou foge do tema ou, pior, agrava a situação com demagogia, bravatas e políticas distorcidas por diagnósticos rasos e soluções simplistas. Há farisaísmo à direita e equívocos à esquerda. Nem todo policial é herói, nem todo criminoso é vítima. Nesse diálogo de surdos, o ambiente nos cárceres e nas ruas se agrava, as mães choram. Só os oportunismos sorriem.

Nas últimas décadas, o crime disparou e tem se fortalecido organizado. Comandos de traficantes, facções que dominam presídios e milícias tomam territórios nos vários quadrantes do país. Estruturam-se de modo hierárquico e profissional. Em busca de proteção ou vantagens, avançam sobre o sistema político elegendo representantes. Patrimonializam o espaço público com suporte oficial.

Ao mesmo tempo, o sistema de Segurança apresenta problemas imemoriais: não se pode generalizar, mas a truculência, a violência, o autoritarismo e a corrupção ocupam largo espaço de suas corporações. Há problemas de recrutamento, seleção, formação e controle. Posto que há problemas, sobretudo, na cultura. Nem sempre há transparência e menos ainda controle social. Não raro, a própria sociedade potencializa o caos.

Entre um e outro – o crime e a polícia –, há preconceito e estigmatização social. Cidadãos comuns desconfiam da polícia, a temem tanto quanto a bandidos. Já setores de elite buscam garantir privilégios acima das leis.

Impossível não lembrar do magnífico documentário de Kátia Lund e João Moreira Salles, “Notícias de uma guerra particular”. Já um clássico. Em especial do depoimento do delegado Hélio Luz: “a sociedade quer uma polícia que não seja corrupta? É possível. Então, não estacione em lugar proibido, não cheire em Ipanema. Vai ter mandado de segurança, pé-na-porta na Delfim Moreira”. Cito de memória.

Na segunda metade dos anos 1990, o extraordinário sociólogo Luiz Eduardo Soares – um dos grandes intelectuais do país – se atirou formalmente ao problema. Nomeado subsecretário de Segurança do Rio de Janeiro, envolveu-se com sistema político em busca de conserto do Sistema de Segurança Pública e do concerto entre os diversos atores do estado. Buscou implementar um Sistema de Segurança renovado, a “Nova Polícia”, eficaz e à serviço da cidadania.

Foi demitido pela televisão pelo então governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, que ao final de uma série de conflitos, resolveu arbitrar em favor do que Soares chamou de "A Banda Podre" do sistema. Sua experiência está dramaticamente descrita num livraço, "Meu casaco de general" (Companhia das Letras, 2000, 480 páginas). Está também, alegoricamente, representada no cinema.

A obra de Kátia Lund e João Moreira Salles, de 1998, é, infelizmente, absolutamente atual. Aliada à experiência de Luiz Eduardo, gerou filmes de sucesso, como "Tropa de Elite 1" e "Tropa de Elite 2". Este denunciava a ocupação de grupos milicianos não apenas no aparelho de Estado – eles nascem justamente aí – mas no sistema político. Demonstrava a lógica e os mecanismos que atrelavam milicianos a campanhas eleitorais.

Foi uma espécie de grito dado em 2010. Mas, nada foi feito, e a situação se agravou. Como se sabe, setores muito próximos das milícias atingiram os mais altos cargos do país.

Não raro, bandidos e polícia se confundem. Mas, não dá para aliviar para a rapaziada de "vida errada". A violência brutal também mora ali. Não dá para minimizar os "efeitos colaterais" das polícias. Claro, esse raciocínio é um bom jeito de pedir para apanhar da direita e da esquerda. Faz parte. O fato é que nesse desastre, todos morrem. Inclusive as ilusões. As mães choram e os oportunistas riem. Ninguém tem razão. Nem solução.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.