#POLÍTICA
Após agenda fiscal e tributária, uma nova agenda para o Brasil
Difícil dizer qual seria essa agenda. O governo Lula – sobretudo, o próprio presidente – não dá muitos sinais do que pretende
Carlos Melo, para Headline IdeiasSe o caminhão não enguiçar no meio do caminho – no Senado ou mesmo no retorno à Câmara – é provável que a agenda fiscal e tributária do Brasil se torne página virada a partir do início do próximo ano. Isso será ótimo! O país voltará a um passado em que era possível ter perspectivas, algo que se perdeu recentemente. Dessa forma, a sociedade e seu governo poderão – ou melhor, deveriam – pensar na próxima agenda.
Difícil dizer qual seria essa agenda. O governo Lula – sobretudo, o próprio presidente – não dá muitos sinais do que pretende. Parece morar no ontem, preso a modos de pensar e fazer vinculados a um tempo que se foi, um presente imaginário. Indica saídas disparatadas: incentivos à indústria automotiva e odes de louvor a projetos que já não deram certo, como o apoio à indústria naval, têm sido recorrentes no governo Lula.
Mas a história mantém sua marcha. O amanhã virá, como sempre. E o fato de hoje é que, se tudo der certo, chegará o momento de o governo e a sociedade olharem para o alvo que, por excelência, pertence à política: o futuro. E se perguntarem: o que fazer?
As respostas não são simples e nem serão esgotadas por analista de política, mais treinado na observação e no entendimento dos conflitos do que em projetos estratégicos, mais amplos do que a rinha das disputas mesquinhas nos parlamentos. Espaços mais abertos e luminosos que o atual campo de visão permite enxergar.
Mesmo assim, com ousadia e humildade, não custa pensar: o preço a pagar será “apenas” a paciência do leitor.
A partir de coisas simples, parece ser possível juntar as partes e dar sentido a um todo mais ou menos complexo. A liberdade de um sujeito buscando compreender o presente, com ânsias de saídas para o futuro, imaginando: “afinal, que fazer?”, pode levar a um conjunto aceitável de ideais e projetos. A ousadia e o atrevimento dos bem-intencionados, às vezes, podem ajudar e, quem sabe, abrir alguma porta.
Inteligência Artificial + Trabalho + Assistência Social + Educação Moderna
A revolução tecnológica atropela as gerações analógicas nos últimos trinta anos, pelo menos. Ela expressa a transição entre eras, um interregno de um passado que se foi e o futuro que já chegou, mas que não se sabe o que fazer com ele. Com a revelação de instrumentos como o Chat GPT, por exemplo – e é apenas um exemplo –, fica evidente que, como um rio caudaloso, esse atropelo se tornou perene. Será constante. Importante aprender a conviver com ele.
Pois, o que já era complicadíssimo pior ficou com o avanço de novas ferramentas de Inteligência Artificial. Se Sérgio Abranches qualifica estes tempos de “a era do imprevisto”, no último ano, esse sentimento e seu temor se ampliaram: são os “tempos do impensável”. Impossível imaginar o que sequer nome possui.
“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”, disse o Guimarães Rosa, meu rosário de cabeceira.
Claro que a manipulação básica de um celular, de redes sociais ou do WhatsApp nada quer dizer a não ser uma adaptação periférica ao não dimensionável potencial tecnológico. Há uma multidão real de abandonados das fábricas, desfabricados, párias analógicos ressentidos do novo e do esquecimento do Estado e da democracia que em nada se antecipou ou fez em relação a eles. Como também os “uberizados” que, como lenitivo à dor, preferem se acreditar empreendedores e, do mesmo modo, produzir fel e bílis contra a política.
A crise e as autocracias originam-se nesse ressentimento e no bullying de pretensos “vencedores” sobre virtuais “perdedores”. Na incompreensão e na insensibilidade de liberais e progressistas para um drama social, concreto, e sem solução de curto e médio prazos que não seja a mitigação de seus efeitos por meio de políticas públicas compensatórias.
Sim, “auxílios emergenciais”, Bolsas Família, moradias populares, cashbacks de impostos. Sem populismo e oportunismo eleitoral, é tudo aquilo que o nefelibata liberal se arrepia só em imaginar. Mas vai ter que engolir.
Essa bobagem reduzir o Estado a nada; esses clichês de escolas do passado pouco valor possuem diante da realidade brutal e do mal-estar que ronda a terra (Tony Judt). Seu único resultado foi fazer com que autocracias sejam abraçadas por todo tipo ignorância e oportunismos defensivos, seja de uma riqueza antiga e decadente, seja de novos ricos pretensiosos e desinformados.
O Estado não poderá fugir à sua tarefa fundamental: aglutinar a sociedade e buscar saídas para impasses históricos. Articular inteligências, investir e induzir investimento em novas áreas. Não porque são de sua escolha e preferência, mas por imposição histórica. A Inteligência Artificial não é uma “modinha”, é imposição. Ela não permite começar de novo e nem refazer começos, mas ajustar processos, assimilando novidades e inventando o que ainda não existe.
Pois, a sociedade industrial analógica, as fábricas, como a conheceram os mais velhos, é hoje retrato na parede e, como Itabira de Drummond, apenas “dói”. Está irremediavelmente no passado.
Mas, a educação que a alicerçava, infelizmente, ainda persiste ativa nos currículos escolares, como modelo mental ultrapassado, em vários lugares do mundo; no Brasil, em particular. E, se mesmo para aqueles padrões, o país já fazia mal a Educação que oferece aos seus, que dizer agora, diante da imprescindível tarefa de sua adequação à nova realidade?
Não se pode fugir da mudança. A história ensinou que é um processo inevitável e inapelável. Logo, tudo precisa ser repensado: modos de ensinar e aprender; conteúdos flexíveis, abertos, experiências, atividades práticas, abstrações, verdades vencidas. Descartar certezas, até porque toda a certeza é precária.
A boa notícia é que há gente boa pensando a respeito de quase tudo isso: aprendendo, construindo, ensinando. Gente que precisa ser aglutinada num todo que faça sentido. Papel da política.
Silvio Meira, cientista, professor associado da FGV do Rio de Janeiro e professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco é uma referência para esse processo de mudança. Recentemente, no programa Roda Viva, da TV Cultura, deu novamente um show de esclarecimentos e reflexões sobre o tema. Meira não é o único. Cabe ao governo reunir e articular toda a inteligência que vem pensando os mais variados temas. Juntar, não dividir.
Assim, em paralelo à mitigação dos efeitos sociais mais perversos da revolução tecnológica sobre os “desfabricados”, é imperativo oferecer uma nova educação para seus filhos, de modo a que não repitam ou perpetuem o destino dos pais. Uma educação que, essencialmente, faça com jovens “aprendam a aprender” constantemente, sem cessar, ganhando autonomia de escolhas e decisão. Formar jovens é construir arquitetos do futuro, além de – logo mais adiante – operadores que realimentarão a agenda de projetos que é para já, para agora, para ontem.
Uma vez superada a agenda fiscal e tributária, com os olhos postos no amanhã, pode-se sonhar com uma agenda para o futuro. Algo mais ou menos assim: meio ambiente, agronegócio, a nova indústria, a reforma urbana, a Segurança Pública, a Saúde, a atenção à Infância, a Política e a Justiça.
Meio ambiente + Agronegócio + Indústria + Infraestrutura
Em seu extraordinário livro, João Moreira Salles indica que, no passado, a Amazônia era o “Arrabalde”: estava acolá, depois daqui, mais ou menos distante. Ninguém lhe dava importância. E essa foi sua ruína, início do desastre.
Hoje, no entanto, para o planeta, é a floresta que pode redimir a todos. A natureza tornou-se o que mais importa para o mundo e o que tem maior valor no Brasil. Seu ativo mais rico em elementos, símbolos e futuro. Os “arrabaldes”, são agora os grandes centros. Eles é que estão distantes, alhures: São Paulo, Rio, Brasília, Porto Alegre e algures. Consomem oxigênio e produzem carbono: esse é seu resultado líquido, ao final.
Assim, a floresta é um bem tão importante que, ao mesmo tempo em que precisa ser preservado, deve ser explorado com cuidado e inteligência. Resumir-se a um santuário seria tão pernicioso quanto impossível.
Já há conhecimento acumulado e muita atividade prática como prova de que isso é tão sustentável como lucrativo. Empresas como a Natura, entre as mais sustentáveis do mundo, podem ser reproduzidas em vários campos: cosméticos, fármacos, alimentos. Bastam engenho, juízo e arte. Elas já existem. Precisam se multiplicar.
A burra interposição a isso, vinda do senso comum, quando se interpõe o meio ambiente à agropecuária, deve ser desqualificada e rapidamente descartada. Em primeiro lugar, há terras já o bastante devastadas e ocupadas destinadas agrícola. É desnecessário expandi-las, como é possível recuperar áreas e solos. Torná-los mais produtivos e, ao mesmo tempo, sustentáveis. Há tecnologia para isso. O Brasil não deixará de ser a grande potência agrícola que já é.
Contudo, pouco discutido no meio político o fato de o Brasil exportar esses bens in natura, sem desenvolver cadeias produtivas e explorar o potencial fabril da imensa maioria de sua pauta. Retirar a riqueza da terra é fácil, embarcar e exportar commodities é cômodo. E, diante do vazio de todo o resto, hoje, talvez, inevitável.
Isso, porém, deveria incomodar a inteligência de qualquer um: o país tem feito a riqueza de muitas economias que processam e enriquecem o que aqui é plantado, colhido ou apenas retirado do solo ou do subsolo. É pouco, muito pouco para um país sério, e para uma elite econômica que se quer inteligente e lucrativa.
Outra boa notícia é que também aqui há gente boa pensando e pesquisando como forjar a reindustrialização nacional a partir da exploração de todo o potencial agropecuário do país. Gente que enxerga meios e investimentos vultoso num novo tipo de indústria articulada, ao meio ambiente e ao campo produtor de alimentos e insumos.
Também aqui cabe ao governo articular a inteligência, financiar bons projetos – exigindo contrapartidas, fazendo cumprir contratos dessa natureza. Além, é claro, de articular a construção e manutenção da infraestrutura: rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, energia e comunicação.
Sem ideologias e preconceitos, parcerias públicos-privadas (PPP) são mais do que factíveis para construir meios que tanto aumentarão a produtividade, diminuirão custos e, sim, criarão empregos. Empregos modernos.
Evidente que nada disso é inédito e, nesse nível básico, é difícil ser criativo. Natural que alguns setores do governo estejam mapeando estas questões, o BNDES, por exemplo. Preocupações básicas, no entanto, vão em duas direções.
O governo Lula estaria realmente enxergando tudo isso? O faz com olhos de amanhã ou com a nostalgia do ontem? Quando o presidente sugere novos subsídios para indústria automotiva, há de se admitir um alerta soa e o ânimo se abate.
Outra preocupação é que este deve se tornar um tema da política, o que até o momento não aconteceu, e, sinceramente, considerando o nível e a dinâmica da política brasileira atual, é difícil de imaginá-lo nas tribunas do Congresso. Somente ao se tornar um tema da sociedade é que poderá romper trancas de interesses particularistas, paradoxalmente, na arena da política. É preciso chutar portas.
Reforma urbana + Segurança Pública + Saúde + Primeira Infância
Outro eixo para uma agenda pós fiscal e tributária reúne a questão urbana, a Segurança Pública, a Saúde e a prioridade para a primeira infância. Se o meio ambiente deixou de ser “arrabalde”, não há motivo para abandonar às cidades a essa condição e simplesmente esquecê-las. Até porque é nos centros das cidades onde tudo ferve, onde as panelas explodem em maior abandono, miséria, violência e crime.
Lembro-me de uma frase fantástica de “O Homem que amava os cachorros”, de Leonardo Padura: “tristeza e miséria, quando compartilhadas, só aumentam”. Basta andar pelas ruas dos grandes centros do país: as cracolândias se multiplicam e os territórios patrimonializados por ricos ou por bandidos vão se estabelecendo. O Estado desapareceu, eis o ultraliberalismo real.
Mas, também aqui é possível encontrar notícias boas: há gente séria pensando, produzindo e implantando políticas públicas importantes.
Nesta semana, tive a oportunidade de assistir a um interessantíssimo seminário, promovido pelo Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, coordenado por Tomás Alvim. Ele reuniu figuras valorosas, como a engenheira Kátia Mello, a ex-prefeita de Boa Vista, em Roraima, Teresa Surita, o ex-secretário nacional de Segurança Pública Ricardo Balestreri.
Kátia Mello mostrou que a “engenharia não dá conta, sem reunir o social e o meio ambiente”; explicou como produziu e implantou projetos de planejamento urbano e desenvolvimento em várias cidades; demonstrou o quanto é necessário conhecer, em detalhe, cada centímetro dos vários territórios: cada rua, cada casa, cada pessoa. Como vivem, do que carecem, como podem contribuir.
Trata-se de um trabalho base para qualquer iniciativa de política pública séria: só se pode gerir aquilo que se conhece, administrar o que se mede.
Seu trabalho, por exemplo, na cidade de Boa Vista foi um pilar para que a sensibilidade e o pragmatismo da prefeita Teresa Surita pudesse avançar em seus cindo mandatos. A despeito de um orçamento diminuto, num lugar afastado do país, vivendo em suas bordas e importando problemas sociais de países vizinhos, município apresenta resultados impressionantes. A partir de estabelecida prioridade total à primeira infância, tudo se fez transformar.
As experiências de Kátia e Teresa podem ser reproduzidas para o resto do país? Claro, mas depende da determinação em fazê-lo. Em primeiro lugar, cabe reconstruir a importância do papel do Estado, em cada cidade brasileira. Retirá-lo de mãos privadas e devolvê-lo à República.
A princípio, Ricardo Balestreri apresenta evidências que fazem abater a mais romântica Polliana. Indica que o número de territórios em que o Estado é impedido de entrar, em virtude da força de grupos criminosos, tem aumentado nos últimos anos: antes, eram alguns lugarejos do rio de Janeiro, hoje se estabeleceram em várias grandes cidades.
A realidade é dantesca e se articulada à memória a respeito do que se sabe de Milícias, Comandos e PCCs, sua tendência é desistir. Até porque, no caso das milícias, não é a falta do Estado a principal causa dessa patrimonialização de territórios, mas a evidência da própria patrimonialização do Estado. Um Estado depravado, doente.
Voltando a Balestreri, ele argumenta que a o braço forte da Segurança Pública stricto sensu pode até apresentar resultados imediatos. Mas que serão tão temporários quanto inúteis. E, pelo contrário, o tensionamento violento tende a gerar ainda mais violência, num círculo vicioso de horrores, com comprometimento da disciplina e da integridade policial. “Ou o Estado ocupa o território com políticas públicas – saturação social – ou nada será feito”.
Ex-secretário de Cidadania, no estado do Pará, Balestreri implantou o Programa Terpaz e as Usinas da Paz. Com apoio político, muita ação e determinação do Estado, verificou que o contrário é plenamente verdadeiro: a implantação de ampla malha de serviços públicos como de Educação, Saúde e Lazer – há bibliotecas e escolas de gastronomia, por exemplo – foi, ao final, o que deu sustentabilidade às ações de Segurança.
“É preciso ter ousadia na administração pública para não fazer mais do mesmo. Começar pelo planejamento é algo pouco usual no Brasil. Tudo é tático, nada é estratégico. Mas o bom planejamento intersetorial traz resultados extraordinários e sustentáveis”, diz. Aponta a importância de um sentido mais amplo de educação para transformação de valores: “há educação em tudo, transversalidade pedagógica”. Por fim, alerta ser “[muito] importante evitar a disputa pelo controle político” desse tipo de projeto.
Assim como no caso de Boa Vista, sua experiência é rica, com excelentes resultados e não caberia detalhá-las num artigo que já vai bastante longo para a paciência do leitor. O fato é ambas demonstram elementos tão importantes quanto reproduzíveis em vários municípios do Brasil: planejamento, definição de prioridades, multidisciplinaridade, esforço pedagógico, gestão apaixonada, determinação política em fazer o correto.
Tão fortes quanto resultados sociais práticos, reconhecimento político e votos virão. A população sabe reconhecer. A questão é dar tempo ao tempo para que tudo possa maturar e transformar.
Reforma Política + Sistema Eleitoral
Tudo vinha bem demais para não acabar em pessimismo: nada do que está acima será feito em escala nacional sem uma boa transformação do sistema político e eleitoral; sem lideranças políticas empunhando essas bandeiras. Mudanças institucionais que elevem a participação, aumentem a fiscalização dos representados sobre os representantes e estabeleçam relações mais democráticas e transparentes são imprescindíveis.
Essa perspectiva, no entanto, ainda não surgiu no horizonte, mesmo o mais distante. O sistema político se descolou dos interesses da população e se aferrou em seus próprios interesses. Improvável que ele próprio se reforme no curto prazo. Sua lógica é ensimesmada e sua dinâmica viciada. Seu funcionamento é, ao final, ineficiente – mesmo após ter aprovado medidas como as reformas da Previdência e a Tributária que levaram dezenas de anos tramitando.
É constrangedor voltar ao mesmo tema tantas vezes martelado, mas uma reforma política, realizada por uma Assembleia instalada exclusivamente para essa tarefa seria fundamental. Porém, tampouco é possível, é necessário admitir. Ainda mais em momento com tamanha divisão e indisposição ao diálogo, como o atual. Mesmo aí caberá dar tempo ao tempo para germinar.
Contudo, recuperando uma das metáforas de Balestreri, pode-se encerrar com um tom elevado: invés de esperar uma luz no fim do túnel, mais útil é invadi-lo com velas e tochas acessas. A sociedade precisa decidir que não mais viverá na escuridão.
* Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.