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Após agenda fiscal e tributária, uma nova agenda para o Brasil

Difícil dizer qual seria essa agenda. O governo Lula – sobretudo, o próprio presidente – não dá muitos sinais do que pretende

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA28 de jul. de 2315 min de leitura
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Lançamento do Programa de Ação na Segurança (PAS) no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 21 de julho de 2023. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Carlos Melo, para Headline Ideias28 de jul. de 2315 min de leitura

Se o caminhão não enguiçar no meio do caminho – no Senado ou mesmo no retorno à Câmara – é provável que a agenda fiscal e tributária do Brasil se torne página virada a partir do início do próximo ano. Isso será ótimo! O país voltará a um passado em que era possível ter perspectivas, algo que se perdeu recentemente. Dessa forma, a sociedade e seu governo poderão – ou melhor, deveriam – pensar na próxima agenda.

Difícil dizer qual seria essa agenda. O governo Lula – sobretudo, o próprio presidente – não dá muitos sinais do que pretende. Parece morar no ontem, preso a modos de pensar e fazer vinculados a um tempo que se foi, um presente imaginário. Indica saídas disparatadas: incentivos à indústria automotiva e odes de louvor a projetos que já não deram certo, como o apoio à indústria naval, têm sido recorrentes no governo Lula.

Mas a história mantém sua marcha. O amanhã virá, como sempre. E o fato de hoje é que, se tudo der certo, chegará o momento de o governo e a sociedade olharem para o alvo que, por excelência, pertence à política: o futuro. E se perguntarem: o que fazer?

As respostas não são simples e nem serão esgotadas por analista de política, mais treinado na observação e no entendimento dos conflitos do que em projetos estratégicos, mais amplos do que a rinha das disputas mesquinhas nos parlamentos. Espaços mais abertos e luminosos que o atual campo de visão permite enxergar.

Mesmo assim, com ousadia e humildade, não custa pensar: o preço a pagar será “apenas” a paciência do leitor.

A partir de coisas simples, parece ser possível juntar as partes e dar sentido a um todo mais ou menos complexo. A liberdade de um sujeito buscando compreender o presente, com ânsias de saídas para o futuro, imaginando: “afinal, que fazer?”, pode levar a um conjunto aceitável de ideais e projetos. A ousadia e o atrevimento dos bem-intencionados, às vezes, podem ajudar e, quem sabe, abrir alguma porta.

Inteligência Artificial + Trabalho + Assistência Social + Educação Moderna

A revolução tecnológica atropela as gerações analógicas nos últimos trinta anos, pelo menos. Ela expressa a transição entre eras, um interregno de um passado que se foi e o futuro que já chegou, mas que não se sabe o que fazer com ele. Com a revelação de instrumentos como o Chat GPT, por exemplo – e é apenas um exemplo –, fica evidente que, como um rio caudaloso, esse atropelo se tornou perene. Será constante. Importante aprender a conviver com ele.

Pois, o que já era complicadíssimo pior ficou com o avanço de novas ferramentas de Inteligência Artificial. Se Sérgio Abranches qualifica estes tempos de “a era do imprevisto”, no último ano, esse sentimento e seu temor se ampliaram: são os “tempos do impensável”. Impossível imaginar o que sequer nome possui. 

“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”, disse o Guimarães Rosa, meu rosário de cabeceira.

Claro que a manipulação básica de um celular, de redes sociais ou do WhatsApp nada quer dizer a não ser uma adaptação periférica ao não dimensionável potencial tecnológico. Há uma multidão real de abandonados das fábricas, desfabricados, párias analógicos ressentidos do novo e do esquecimento do Estado e da democracia que em nada se antecipou ou fez em relação a eles. Como também os “uberizados” que, como lenitivo à dor, preferem se acreditar empreendedores e, do mesmo modo, produzir fel e bílis contra a política.

A crise e as autocracias originam-se nesse ressentimento e no bullying de pretensos “vencedores” sobre virtuais “perdedores”. Na incompreensão e na insensibilidade de liberais e progressistas para um drama social, concreto, e sem solução de curto e médio prazos que não seja a mitigação de seus efeitos por meio de políticas públicas compensatórias.

Sim, “auxílios emergenciais”, Bolsas Família, moradias populares, cashbacks de impostos. Sem populismo e oportunismo eleitoral, é tudo aquilo que o nefelibata liberal se arrepia só em imaginar. Mas vai ter que engolir.

Essa bobagem reduzir o Estado a nada; esses clichês de escolas do passado pouco valor possuem diante da realidade brutal e do mal-estar que ronda a terra (Tony Judt). Seu único resultado foi fazer com que autocracias sejam abraçadas por todo tipo ignorância e oportunismos defensivos, seja de uma riqueza antiga e decadente, seja de novos ricos pretensiosos e desinformados.

O Estado não poderá fugir à sua tarefa fundamental: aglutinar a sociedade e buscar saídas para impasses históricos. Articular inteligências, investir e induzir investimento em novas áreas. Não porque são de sua escolha e preferência, mas por imposição histórica. A Inteligência Artificial não é uma “modinha”, é imposição. Ela não permite começar de novo e nem refazer começos, mas ajustar processos, assimilando novidades e inventando o que ainda não existe.

Pois, a sociedade industrial analógica, as fábricas, como a conheceram os mais velhos, é hoje retrato na parede e, como Itabira de Drummond, apenas “dói”. Está irremediavelmente no passado.

Mas, a educação que a alicerçava, infelizmente, ainda persiste ativa nos currículos escolares, como modelo mental ultrapassado, em vários lugares do mundo; no Brasil, em particular. E, se mesmo para aqueles padrões, o país já fazia mal a Educação que oferece aos seus, que dizer agora, diante da imprescindível tarefa de sua adequação à nova realidade?

Não se pode fugir da mudança. A história ensinou que é um processo inevitável e inapelável. Logo, tudo precisa ser repensado: modos de ensinar e aprender; conteúdos flexíveis, abertos, experiências, atividades práticas, abstrações, verdades vencidas. Descartar certezas, até porque toda a certeza é precária.

A boa notícia é que há gente boa pensando a respeito de quase tudo isso: aprendendo, construindo, ensinando. Gente que precisa ser aglutinada num todo que faça sentido. Papel da política.

Silvio Meira, cientista, professor associado da FGV do Rio de Janeiro e professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco é uma referência para esse processo de mudança. Recentemente, no programa Roda Viva, da TV Cultura, deu novamente um show de esclarecimentos e reflexões sobre o tema. Meira não é o único. Cabe ao governo reunir e articular toda a inteligência que vem pensando os mais variados temas. Juntar, não dividir.

Assim, em paralelo à mitigação dos efeitos sociais mais perversos da revolução tecnológica sobre os “desfabricados”, é imperativo oferecer uma nova educação para seus filhos, de modo a que não repitam ou perpetuem o destino dos pais. Uma educação que, essencialmente, faça com jovens “aprendam a aprender” constantemente, sem cessar, ganhando autonomia de escolhas e decisão. Formar jovens é construir arquitetos do futuro, além de – logo mais adiante – operadores que realimentarão a agenda de projetos que é para já, para agora, para ontem.

Uma vez superada a agenda fiscal e tributária, com os olhos postos no amanhã, pode-se sonhar com uma agenda para o futuro. Algo mais ou menos assim: meio ambiente, agronegócio, a nova indústria, a reforma urbana, a Segurança Pública, a Saúde, a atenção à Infância, a Política e a Justiça.

Meio ambiente + Agronegócio + Indústria + Infraestrutura

Em seu extraordinário livro, João Moreira Salles indica que, no passado, a Amazônia era o “Arrabalde”: estava acolá, depois daqui, mais ou menos distante. Ninguém lhe dava importância. E essa foi sua ruína, início do desastre.

Hoje, no entanto, para o planeta, é a floresta que pode redimir a todos. A natureza tornou-se o que mais importa para o mundo e o que tem maior valor no Brasil. Seu ativo mais rico em elementos, símbolos e futuro. Os “arrabaldes”, são agora os grandes centros. Eles é que estão distantes, alhures: São Paulo, Rio, Brasília, Porto Alegre e algures. Consomem oxigênio e produzem carbono: esse é seu resultado líquido, ao final.

Assim, a floresta é um bem tão importante que, ao mesmo tempo em que precisa ser preservado, deve ser explorado com cuidado e inteligência. Resumir-se a um santuário seria tão pernicioso quanto impossível.

Já há conhecimento acumulado e muita atividade prática como prova de que isso é tão sustentável como lucrativo. Empresas como a Natura, entre as mais sustentáveis do mundo, podem ser reproduzidas em vários campos: cosméticos, fármacos, alimentos. Bastam engenho, juízo e arte. Elas já existem. Precisam se multiplicar.

A burra interposição a isso, vinda do senso comum, quando se interpõe o meio ambiente à agropecuária, deve ser desqualificada e rapidamente descartada. Em primeiro lugar, há terras já o bastante devastadas e ocupadas destinadas agrícola. É desnecessário expandi-las, como é possível recuperar áreas e solos. Torná-los mais produtivos e, ao mesmo tempo, sustentáveis. Há tecnologia para isso. O Brasil não deixará de ser a grande potência agrícola que já é.

Contudo, pouco discutido no meio político o fato de o Brasil exportar esses bens in natura, sem desenvolver cadeias produtivas e explorar o potencial fabril da imensa maioria de sua pauta. Retirar a riqueza da terra é fácil, embarcar e exportar commodities é cômodo. E, diante do vazio de todo o resto, hoje, talvez, inevitável.

Isso, porém, deveria incomodar a inteligência de qualquer um: o país tem feito a riqueza de muitas economias que processam e enriquecem o que aqui é plantado, colhido ou apenas retirado do solo ou do subsolo. É pouco, muito pouco para um país sério, e para uma elite econômica que se quer inteligente e lucrativa.

Outra boa notícia é que também aqui há gente boa pensando e pesquisando como forjar a reindustrialização nacional a partir da exploração de todo o potencial agropecuário do país. Gente que enxerga meios e investimentos vultoso num novo tipo de indústria articulada, ao meio ambiente e ao campo produtor de alimentos e insumos.

Também aqui cabe ao governo articular a inteligência, financiar bons projetos – exigindo contrapartidas, fazendo cumprir contratos dessa natureza. Além, é claro, de articular a construção e manutenção da infraestrutura: rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, energia e comunicação.

Sem ideologias e preconceitos, parcerias públicos-privadas (PPP) são mais do que factíveis para construir meios que tanto aumentarão a produtividade, diminuirão custos e, sim, criarão empregos. Empregos modernos.

Evidente que nada disso é inédito e, nesse nível básico, é difícil ser criativo. Natural que alguns setores do governo estejam mapeando estas questões, o BNDES, por exemplo. Preocupações básicas, no entanto, vão em duas direções.

O governo Lula estaria realmente enxergando tudo isso? O faz com olhos de amanhã ou com a nostalgia do ontem? Quando o presidente sugere novos subsídios para indústria automotiva, há de se admitir um alerta soa e o ânimo se abate.

Outra preocupação é que este deve se tornar um tema da política, o que até o momento não aconteceu, e, sinceramente, considerando o nível e a dinâmica da política brasileira atual, é difícil de imaginá-lo nas tribunas do Congresso. Somente ao se tornar um tema da sociedade é que poderá romper trancas de interesses particularistas, paradoxalmente, na arena da política. É preciso chutar portas.

Reforma urbana + Segurança Pública + Saúde + Primeira Infância

Outro eixo para uma agenda pós fiscal e tributária reúne a questão urbana, a Segurança Pública, a Saúde e a prioridade para a primeira infância. Se o meio ambiente deixou de ser “arrabalde”, não há motivo para abandonar às cidades a essa condição e simplesmente esquecê-las. Até porque é nos centros das cidades onde tudo ferve, onde as panelas explodem em maior abandono, miséria, violência e crime.

Lembro-me de uma frase fantástica de “O Homem que amava os cachorros”, de Leonardo Padura: “tristeza e miséria, quando compartilhadas, só aumentam”. Basta andar pelas ruas dos grandes centros do país: as cracolândias se multiplicam e os territórios patrimonializados por ricos ou por bandidos vão se estabelecendo. O Estado desapareceu, eis o ultraliberalismo real

Mas, também aqui é possível encontrar notícias boas: há gente séria pensando, produzindo e implantando políticas públicas importantes.

Nesta semana, tive a oportunidade de assistir a um interessantíssimo seminário, promovido pelo Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, coordenado por Tomás Alvim. Ele reuniu figuras valorosas, como a engenheira Kátia Mello, a ex-prefeita de Boa Vista, em Roraima, Teresa Surita, o ex-secretário nacional de Segurança Pública Ricardo Balestreri.

Kátia Mello mostrou que a “engenharia não dá conta, sem reunir o social e o meio ambiente”; explicou como produziu e implantou projetos de planejamento urbano e desenvolvimento em várias cidades; demonstrou o quanto é necessário conhecer, em detalhe, cada centímetro dos vários territórios: cada rua, cada casa, cada pessoa. Como vivem, do que carecem, como podem contribuir.

Trata-se de um trabalho base para qualquer iniciativa de política pública séria: só se pode gerir aquilo que se conhece, administrar o que se mede.

Seu trabalho, por exemplo, na cidade de Boa Vista foi um pilar para que a sensibilidade e o pragmatismo da prefeita Teresa Surita pudesse avançar em seus cindo mandatos. A despeito de um orçamento diminuto, num lugar afastado do país, vivendo em suas bordas e importando problemas sociais de países vizinhos, município apresenta resultados impressionantes. A partir de estabelecida prioridade total à primeira infância, tudo se fez transformar.

As experiências de Kátia e Teresa podem ser reproduzidas para o resto do país? Claro, mas depende da determinação em fazê-lo. Em primeiro lugar, cabe reconstruir a importância do papel do Estado, em cada cidade brasileira. Retirá-lo de mãos privadas e devolvê-lo à República.

A princípio, Ricardo Balestreri apresenta evidências que fazem abater a mais romântica Polliana. Indica que o número de territórios em que o Estado é impedido de entrar, em virtude da força de grupos criminosos, tem aumentado nos últimos anos: antes, eram alguns lugarejos do rio de Janeiro, hoje se estabeleceram em várias grandes cidades.

A realidade é dantesca e se articulada à memória a respeito do que se sabe de Milícias, Comandos e PCCs, sua tendência é desistir. Até porque, no caso das milícias, não é a falta do Estado a principal causa dessa patrimonialização de territórios, mas a evidência da própria patrimonialização do Estado. Um Estado depravado, doente.

Voltando a Balestreri, ele argumenta que a o braço forte da Segurança Pública stricto sensu pode até apresentar resultados imediatos. Mas que serão tão temporários quanto inúteis. E, pelo contrário, o tensionamento violento tende a gerar ainda mais violência, num círculo vicioso de horrores, com comprometimento da disciplina e da integridade policial. “Ou o Estado ocupa o território com políticas públicas – saturação social – ou nada será feito”.

Ex-secretário de Cidadania, no estado do Pará, Balestreri implantou o Programa Terpaz e as Usinas da Paz. Com apoio político, muita ação e determinação do Estado, verificou que o contrário é plenamente verdadeiro: a implantação de ampla malha de serviços públicos como de Educação, Saúde e Lazer – há bibliotecas e escolas de gastronomia, por exemplo – foi, ao final, o que deu sustentabilidade às ações de Segurança.

“É preciso ter ousadia na administração pública para não fazer mais do mesmo. Começar pelo planejamento é algo pouco usual no Brasil. Tudo é tático, nada é estratégico. Mas o bom planejamento intersetorial traz resultados extraordinários e sustentáveis”, diz. Aponta a importância de um sentido mais amplo de educação para transformação de valores: “há educação em tudo, transversalidade pedagógica”. Por fim, alerta ser “[muito] importante evitar a disputa pelo controle político” desse tipo de projeto.

Assim como no caso de Boa Vista, sua experiência é rica, com excelentes resultados e não caberia detalhá-las num artigo que já vai bastante longo para a paciência do leitor. O fato é ambas demonstram elementos tão importantes quanto reproduzíveis em vários municípios do Brasil: planejamento, definição de prioridades, multidisciplinaridade, esforço pedagógico, gestão apaixonada, determinação política em fazer o correto.

Tão fortes quanto resultados sociais práticos, reconhecimento político e votos virão. A população sabe reconhecer. A questão é dar tempo ao tempo para que tudo possa maturar e transformar.   

Reforma Política + Sistema Eleitoral

Tudo vinha bem demais para não acabar em pessimismo: nada do que está acima será feito em escala nacional sem uma boa transformação do sistema político e eleitoral; sem lideranças políticas empunhando essas bandeiras. Mudanças institucionais que elevem a participação, aumentem a fiscalização dos representados sobre os representantes e estabeleçam relações mais democráticas e transparentes são imprescindíveis.

Essa perspectiva, no entanto, ainda não surgiu no horizonte, mesmo o mais distante. O sistema político se descolou dos interesses da população e se aferrou em seus próprios interesses. Improvável que ele próprio se reforme no curto prazo. Sua lógica é ensimesmada e sua dinâmica viciada. Seu funcionamento é, ao final, ineficiente – mesmo após ter aprovado medidas como as reformas da Previdência e a Tributária que levaram dezenas de anos tramitando.

É constrangedor voltar ao mesmo tema tantas vezes martelado, mas uma reforma política, realizada por uma Assembleia instalada exclusivamente para essa tarefa seria fundamental. Porém, tampouco é possível, é necessário admitir. Ainda mais em momento com tamanha divisão e indisposição ao diálogo, como o atual. Mesmo aí caberá dar tempo ao tempo para germinar.

Contudo, recuperando uma das metáforas de Balestreri, pode-se encerrar com um tom elevado: invés de esperar uma luz no fim do túnel, mais útil é invadi-lo com velas e tochas acessas. A sociedade precisa decidir que não mais viverá na escuridão.

* Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.

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