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Bolsonaro em fogo lento e o “efeito Orloff” ao contrário

O imperativo: um processo justo, dentro da lei, com amplo direito de defesa, provas factuais, materiais ou testemunhais – não convicções – e juízes que não operem interesses próprios ou de grupo

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA24 de ago. de 237 min de leitura
O ex-presidente Jair Bolsonaro participa da cerimônia de troca da guarda, no Palácio do Planalto, em 15 de janeiro de 2019. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Carlos Melo, para Headline Ideias24 de ago. de 237 min de leitura

Corrupção de vintém é corrupção também. A cobiça e a agressão às leis são as mesmas, ainda que os “valores” possam se diferenciar. Não há régua para medir “maior” ou “menor” corrupto. Quem pode o menos, sem freios, poderá o mais. O estelionatário começou fraudando lista de presença em sala de aula; passando “cola”. Impossível saber se o que foi revelado é todo o butim: da pena puxada vem a galinha ou todo um galinheiro? Corrupção “bem-feita” não aparece.

Irônico que bolsonaristas, inclementes com crianças e adultos pegos em pequenos furtos em supermercados, relativizem, agora, casos envolvendo seu mito. Farisaísmo. Lula, no seu tempo, foi encarcerado por um triplex hoje avaliado em valor inferior às joias retidas na alfândega, em Guarulhos. Corrupção é corrupção, sem “indulgência de montante”.

O mais importante é que o processo seja justo, dentro da lei, com amplo direito de defesa. As provas baseadas em fatos, não convicções; elementos sólidos, materiais ou testemunhais. Juízes que não operem interesses próprios ou de grupo. O resto é silêncio. “Decisão da Justiça não se discute, cumpre-se”. Ponto. Erro é desejar para o inimigo o que não admitiria para si. O bumerangue volta à testa.

Os problemas do ex-presidente com a Justiça, é claro, não se restringem ao desvio de algumas joias. Merreca diante do poder da presidência da República. Há uma alentada lista de inquéritos e atos que, a seu tempo, serão apurados. Centena de imóveis comprados com dinheiro vivo, a loucura da pandemia, mortes que poderiam ser evitadas. Crimes eleitorais, atentados à Democracia. A lista é longa.

Bolsonaro será levado à barra dos tribunais por bem mais que um relógio kitsch, de gosto duvidoso. Mas a postura em torno das joias pode servir para compreender o comportamento e puxar o fio da meada. Envolvendo o ciclo mais próximo do ex-presidente, amplia o campo de investigação. Desobstruído o canal, tem-se o fluxo, a vazão. O resto é mineração: procurar e encontrar.

Fogo lento

Ouvi de um procurador federal, a quem entrevistei para trabalho sobre combate à corrupção, que no Ministério Público não há hesitação diante da menor oportunidade: prende-se pelo que for possível e mais rápido. Qualquer pingo vira letra. O “resto” surgirá como desdobramento – já com o investigado encarcerado, sem condições de destruir provas ou cair no mundo.

O caso de Jair Bolsonaro, porém, tende a ser mais lento. Conforme a imprensa, a prisão, se vier, não será imediata. “Não se afobe não, nada é pra já”. Fontes revelam que a Polícia Federal não tem pressa. Não apenas se trata de um ex-presidente da República, como de um líder sem cultura ou freios institucionais, mobilizador de grupos violentos. Inspira cuidados. 

A receita recomenda submeter Jair Bolsonaro a fogo lento e constante. Engajante, com revelações a cada semana ou a cada dia. Pedagógico e didático, capaz de levar ao entendimento gradual e esclarecido sobre, afinal, do que se trata. A comunicação é elemento fundamental de qualquer guerra.

Isso o levará ao desgaste, minando popularidade e desmoralizando-o diante purismo moral de parte de seu eleitorado. Espera-se anular a tropa de aloprados, inibir ou minimizar reações. Na gíria dos morros e das milícias cariocas, “esculachar antes de levar para o DP”.

Do suposto hacker Walter Delgatti, um balaio de informações comprometedoras, envolvendo diretamente o ex-presidente à conspiração contra as eleições, já foi recolhido. O que disse arrasta Bolsonaro e parte de seu grupo para a autoria intelectual e operacional do golpe frustrado. Faz um bom estrago, a começar pela dificuldade em explicar o que um sujeito obscuro como Delgatti fazia em Palácio, recebido pelo presidente.

De Bolsonaro espera-se tudo, mas absurdo maior é o fato de Delgatti ter-se reunido com militares, no ministério da Defesa. “Avaliavam a (in) segurança das urnas”, dizem. Mas, logo Delgatti, criminoso especialista em invadir e fraudar dispositivos eletrônicos? Um ultraje que ficará para a história.

Delinquente confesso, o condenado Delgatti cumprirá 20 anos de prisão por trambiques anteriores. Tem pouco a perder e algo a ganhar. Dirá o que sabe e até o que não sabe. Mais um campo para prospecção. E outro ponto de pressão e tensão para o bolsonarismo. Requer, é claro, cuidados. É pouco confiável e fantasioso. Na justiça, não se pode ir além da verdade – risco das “delações premiadas” que o Brasil já conheceu.

Outro fio desencapado é o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid. A PF diz tudo já saber a respeito de joias e vacinas, quer a confissão de outros crimes para, então, ponderar como e o que aliviar nesse e em futuros casos. Cid seguia de perto os passos e a sombra de Jair Bolsonaro. O potencial investigativo é enorme.

O arrasto de seu pai, general da reserva Mauro César Lourena Cid, para o centro do escândalo foi um dínamo importante nesse jogo: despertou o remorso do filho e sua disposição de “colaborar”. Além disso, General da Reserva, Cid Pai é respeitado pela Ativa. Sua participação na barafunda faz desvanecer a ingenuidade de muita gente da caserna.

Levou o alto comando das Forças Armadas à resolução, aparentemente consensada e determinada, de afastar os milicos da política. “Se quiser ser político, deixe a farda”. Tende a inibir planos e a influência de golpistas. É positivo, no final. Mas ainda é cedo para afirmar se levará à modernização e à democratização das Forças. O tempo dirá.

O bolsonarismo reage em seu habitat, as redes sociais e a deep web. Com as armas de sempre, a dissimulação, o ódio e a mentira. A alucinação de sempre: armação contra o Mito salvador e conspiração comunista. Está longe de ser irrelevante, o feitiço ainda domina os dormentes. É muita gente. Gradativamente, sob controle, porém.

Efeito Orloff ao contrário...

Na década de 1980, um comercial de TV insistia que a vodca Orloff não causaria ressaca na manhã seguinte. Um sujeito sóbrio e bem-apanhado dizia ao bebedor da tela que não se preocupasse com o porre: disposto e sem dores de cabeça, “eu sou você amanhã”. Ilusão, soube na minha juventude.

Ficou o bordão “Eu sou você amanhã”. Economistas brasileiros e argentinos o adotaram e nasceu daí o chamado “efeito Orloff”: o que se dava num país tendia a ocorrer, mais adiante, no outro. Normalmente, era ruim... Meio sério, meio chacota, o fato é que os erros cometidos aqui e lá se repetiam, numa espiral de erros e horrores que levou os dois países à superinflação.

O congressista argentino e pré-candidato presidencial da Aliança La Libertad Avanza, Javier Milei, gesticula após votar durante as eleições primárias em um posto de votação em Buenos Aires, em 13 de agosto de 2023. Foto: Alejandro Pagni/AFP
O congressista argentino e pré-candidato presidencial da Aliança La Libertad Avanza, Javier Milei, gesticula após votar durante as eleições primárias em um posto de votação em Buenos Aires, em 13 de agosto de 2023. Foto: Alejandro Pagni/AFP

Há alguns dias, os argentinos foram às ruas e fizeram lembrar o “efeito Orloff”. Despertaram e animaram fantasma, não mais econômico, mas político: Javier Milei. Líder da coalizão La Liberdad Avanza, é um político de extrema-direita, com jeito, raciocínio e discurso de doido: dinamitará o Banco Central, legalizará a venda de órgãos humanos, proporá o fim da educação obrigatória.

A demência é tal que, de acordo com o jornalista brasileiro-argentino Ariel Palacios, Milei diz se aconselhar em sessões psicográficas com seu falecido cão, Conan. É o espírito do cão que o dirige? Especulações à parte, fico a ruminar: pode-se até crer em psicografia – questão de desespero e fé. O que não quer calar é: quem ensinou o Conan a escrever?

Milei se diz fã de Jair Bolsonaro, a quem agradece o apoio. É, aliás, conhecido como “Bolsonaro argentino”. Ostenta 35,85% das intenções de voto, de acordo com a média das pesquisas recentes naquele país. Vencerá a eleição? O juízo dos argentinos (ou a falta) dirá nas urnas.

País de gente, futebol, literatura e cinema extraordinários – além dos vinhos –, a Argentina ensaia um “efeito Orloff ao contrário”, ser “o Brasil de ontem”. Mas, se Milei realmente vier a tornar-se presidente da República, um espectro atravessará a fronteira: o temor de que o Brasil venha a ser a Argentina de depois de amanhã. A ressaca será certa.

Carlos Melo, cientista político. Professor Senior Fellow do Insper.

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