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Desafio histórico, a esfinge de cada presidente

Alguns presidentes da República compreenderam seu sentido e foram - ou ainda serão - reconhecidos pela História. Outros, deixaram-se devorar

Carlos Melo, para Headline Ideias
#BRASIL4 de abr. de 2314 min de leitura
O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro fala durante o evento Turning Point USA, no resort Trump National Doral, em Miami, em fevereiro de 2023. Foto: Joe Raedle/Getty Images/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias4 de abr. de 2314 min de leitura

Rio perene, intenso e inclemente, a história é fluxo permanente que conduz à plenitude do mar ou ao naufrágio. Faz o agora passado. Traz o futuro a bater à nossa porta. É fortuna. A tarefa mais básica e essencial do pretenso Príncipe é sintonizar-se a ela, e não se deixar varrer por sua força indômita. Tateá-la primeiro, com certeza. Mas, também dominá-la – pelo menos tentar. Parafraseando o poeta, a história “é combate que aos fracos abate e aos fortes só pode exaltar”.

Da redemocratização do Brasil (1985) para cá, a história se impôs a todos os governantes. Apresentou desafios tão fundamentais quanto inescapáveis. Ora esfinge se apresentou como enigma. Ora processo, vestiu-se de círculo virtuoso. De todo modo, impõe seu “decifra-me ou te devoro”. É um Minotauro à espera no Labirinto. É preciso ser um pouco Teseu para vencê-la.

Alguns presidentes da República compreenderam seu sentido e foram - ou ainda serão - reconhecidos pela História. Outros, deixaram-se devorar.

Infelizmente, explicar e compreender esse processo não é coisa simples, nem jogo-rápido. Para os padrões da Internet, implica em análise longa. Esforço alentado que, inevitavelmente, deságua no “textão”. Necessário enxergar os últimos quase quarenta anos (1985 - 2022) numa visão panorâmica. Um exercício – mais ou menos proveitoso – para compreender os desafios do presente.

Oxalá que a leitura não lhe pese. Então, “senta que lá vem história!”

Desafio de Tancredo e Sarney: democracia

Eleito indiretamente em 1985, Tancredo Neves sequer tomou posse em março de 1986: adoeceu, morreu em seguida. Mas, o desenho do ministério e o básico de seus compromissos da campanha demonstravam o desafio histórico imposto: no pós-ditadura militar, convocar uma nova Constituinte, entregar uma Constituição democrática ao país. Levá-lo à eleição direta.

Vice de Tancredo, José Sarney penou como o diabo, mas honrou a missão básica do parceiro de chapa. Verdade, saiu desgastadíssimo do governo: a inflação de 80% ao mês e denúncias de corrupção corroeram-lhe a popularidade. Na eleição de 1989, foi sparing impiedosamente destratado pela mídia e por quase todos os candidatos. Mesmo assim, deu respostas às imposições da história.

Os militares voltaram aos quartéis e lá permaneceram pelo menos até 2012 – quando principiaram nova conspiração. Críticas, as mais duras, foram democraticamente absorvidas pelo presidente. O fantasma de Tancredo e a sombra de Ulysses Guimarães foram assimilados. O país teve nova Constituição e, finalmente, sua eleição direta. A partir de então, o processo passou a constituir um círculo virtuoso de transformações lentas, mas consistentes. Paulatinamente, a história o tem reconhecido.

Collor, ousadia e soberba

Quando Fernando Collor de Mello tomou posse, restavam sequelas do regime autoritário. Colocando fim ao Serviço Nacional de Informações, famigerado SNI, o presidente deu sequência ao processo de desmilitarização do Estado. Com a questão democrática basicamente resolvida, tratava-se, então, de enfrentar os terríveis problemas econômicos.

A escabrosa inflação de quase 2.000% ao ano, entregue por José Sarney, era a grande questão. Além disso, abrir o Brasil à economia mundial. Como me disse o ex-ministro Maílson da Nóbrega – para minha tese de doutorado -, “o presidente tinha a coragem dos muito ignorantes” e se comprometeu com medidas de força inéditas na história do país. Collor tentou e fracassou pelo excesso. “Em 1992, os preços subiram 1.119,10%, dois anos após o confisco que provocou recessão de 4,35% em 1990” (O Globo, 06.12.2015).

Além disso, o jovem presidente não compreendeu as características do “presidencialismo de coalizão” nascido com a nova Constituição. Foi perigosamente autossuficiente. Arrogante, imaginou um Congresso para servi-lo. Os ventos da democracia o desalojaram sua soberba do Planalto.

Seu maior pecado foi mesmo não ter dado conta do combate à inflação. Fracassado no desafio histórico, o impeachment foi a derivada natural, sobretudo, do insucesso econômico. É possível que, dominada a inflação, todo o resto – escândalos e erros às pencas – fosse obliterado. E a CPI que deu início a seu martírio, talvez, sequer fosse instalada. Mas, na história, o “se” não tem vez.

O desafio do Real

O motor do fusca de Itamar Franco demorou a dar partida. Teimoso e performático na personalidade difícil, o vice empossado tropeçou até equilibrar-se nas cordas de ministério de alto nível político e intelectual. A sorte lhe deu o Plano Real e o desafio histórico não compreendido por Fernando Collor foi finalmente vencido. Sua coroação foi eleger o sucessor, em primeiro turno, montado no cavalo da fortuna do Plano elaborado e implantado por Fernando Henrique Cardoso e uma equipe de economistas brilhantes.

Assim, FHC já compreendera – antes, ministro de Itamar – o desafio histórico que se impunha ao Brasil. Chanceler articulado com o mercado internacional e intelectual do mundo, o combate à inflação viria agora acompanhado de um processo de ajustes estruturais, privatizações, modernização de infraestrutura, abertura do país à economia globalizada e a estabilidade econômica para além da estabilização monetária.

A manutenção do processo estabelecido a partir do Real, diziam seus aliados, justificaria a continuidade do mandato de forma a consolidar a mudança estrutural imposta em seu tempo. Constrangidamente beneficiado, FHC aceitou articulações em torno da proposta constitucional que estabeleceu a reeleição. Não por acaso, foi reeleito – igualmente em primeiro turno. E o desafio histórico, de fato, teve continuidade no segundo mandato.

Lula: não interromper, dar sequência e ampliar o processo

Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao governo com importantes questões estruturais resolvidas pela história: a democracia, a inflação e a estabilidade econômica. Isso lhe permitiu andar várias casas à frente e encarar o desafio da inclusão social e da distribuição de renda. A “Campanha Contra Fome”, do Betinho, e a consciência da atávica desigualdade do país o ajudaram a estabelecer um rumo claro aos seus governos.

“Assim como a dinâmica implantada pelo Real, a conjuntura internacional ajudou”, ainda hoje dizem os desafetos. É verdade. À época, tucanos afirmavam que Lula “apenas deu continuidade a obra de FHC”. Cabia lhes perguntar: “deveria ter feito o contrário e demolir o edifício de FHC?”. Despeito à parte, o fato é que o petista não cedeu à tentação de interromper o processo iniciado em 1985, expectativa que, aliás, setores de seu partido acalentavam. Isso demanda clareza e outros méritos.

A compreensão do que fazer diante das circunstâncias é qualidade fundamental da liderança política. Mesmo afirmando ter recebido uma herança maldita, – mera retórica – Lula compreendeu o contexto, deu sequência ao processo e o expandiu para importantes políticas públicas que o tempo confirmou importantíssimas para o desenvolvimento do país. Erros à parte, foi reeleito com facilidade. Fez a sucessora e deixou o governo com mais de 80% de popularidade.

Dilma e o desprezo aos sinais da história

Democracia, inflação sob controle, estabilidade econômica, inclusão social: qual o desafio histórico de Dilma Rousseff? Um ciclo virtuoso se havia estabelecido e tratava-se agora dar vazão ao processo a caminho de completar três décadas. Manter a estabilidade econômica e a inclusão social demandaria resolver absurdos problemas de infraestrutura do país e, assim, permitir a superação dos índices de produtividade e o aperfeiçoamento do ambiente de negócios nacionais.

Isso não seria possível pela via quase exclusiva do Estado e pela centralização burocrática do processo. A articulação público-privada, a condução do processo político e parlamentar eram essenciais. A tecnocracia avessa à construções coletivas e de nariz empinado diante dos críticos não daria conta do desafio. Fazer política no mais alto grau era imperativo.

Em abril de 2013 escrevi um longo artigo em que afirmava desconfiar que a presidente se perdia no desafio histórico que lhe cabia. Era evidente que deixava levar por equívocos de uma liderança tecno-burocrática, sem sensibilidade política para as características do país e as dificuldades impostas pelo sistema político.

Dez anos depois, ao reler o artigo publicado na Revista Interesse Nacional, me deparei com seu primeiro parágrafo que ressaltava que “a vantagem do pessimismo é que vale a pena estar errado”. A história demostrou que a visão de mundo e o estilo de liderança da presidente não se ajustavam à realidade mais complexa. Lamento ter acertado.

O impeachment de Dilma é controverso. Somente agora a academia, por exemplo, busca compreender conceitualmente o que realmente aconteceu: a deposição institucional se deu em virtude de um crime de responsabilidade, por erros políticos, pela perda de governabilidade ou por meio de golpe político? Há muito a pesquisar sobre os bastidores da reeleição e do processo de impeachment – o tempo dirá. Mas é possível que haja de tudo um pouco: um golpe, talvez. Mas, institucional e resultado de sua profunda inabilidade política.

A despeito de, ao final, ambos terem sido absolvidos pela justiça e inocentados de crimes que lhes foram atribuídos, o fato é que Fernando Collor e Dilma Rousseff não compreenderam nem a natureza do presidencialismo de coalizão nem o desafio histórico que lhes foi colocado. Foram a-históricos, de certo modo.

Nota: numa recente conversa a respeito do mandato exercido por Michel Temer, atinei para o fato de que as reformas que seus apoiadores indicam como importantes realizações do presidente estão no campo do aperfeiçoamento do ambiente de negócios e da tentativa de elevar a produtividade da economia nacional. Desafios que Dilma não cumpriu.

Além de navegar eficientemente com as regras do presidencialismo de coalizão – e até beneficiar-se delas –, consciente ou não, Michel Temer buscou respostas à missão que a história lhe colocava: tentou estender uma ponte para o futuro ou uma pinguela, que seja, como a qualificou Fernando Henrique Cardoso.

2018: o desastre de um desafio na contramão da história

A dinâmica que levou ao impeachment de Dilma desorganizou o processo e levou à novas necessidades e a mais complexos desafios. Já não bastavam medidas que aumentassem à produtividade ou aperfeiçoassem o ambiente de negócios. Vários setores da sociedade – sobretudo, o mercado financeiro - não se deram conta de que a questão econômica embora permanecesse fundamental, deixava de ser única ou vital, pelo menos naquele momento.

Visto de um ponto racional e evolutivo, 2018 demandava um freio de arrumação geral: liderança política legítima e apta a construir um novo pacto social, de modo a que se retornasse ao processo iniciado em 1985, retomando o círculo virtuoso. Nem a sociedade, nem o sistema político compreenderam assim.

Em vários lugares do mundo, “o povo se levantou contra a democracia”, como demonstrou Yascha Mounk. Os marcos desse momento foram o Brexit, na Inglaterra em 2015, passando pela eleição de Donald Trump, em 2016, nos Estados Unidos. O Brasil veio de Jair Bolsonaro na sequência.

Forjava-se um processo de reação a tudo o que se avançou e se conquistou desde o fim da Segunda Guerra Mundial, passando pela transformação neoliberal do início dos anos 1980 e pela queda do Muro de Berlim, em 1989. Aspectos que abriam o mundo ao progresso da ciência e o desenharam como uma esfera de diversidade e interações globais.

Deu-se o conflito entre duas visões de história: uma, continuísta, mas mesmo assim progressista, que pretendia mitigar os efeitos das múltiplas revoluções – científica, tecnológica, econômica e social – das últimas décadas. Outra, defensiva e regressiva, vinculada à ilusão da volta a um passado autocrático, politicamente, e plutocrático, economicamente. Medieval em relação à ciência, ao conhecimento e aos costumes. Uma perspectiva reacionária. Um misto de Make America – ou Brasil – Great Again e Vladimir Putin.

Foi esse desafio histórico reacionário, que se deu ao nível mundial, que levou Jair Bolsonaro ao poder em 2019. Já não era possível seguir em frente, no processo iniciado no Brasil mais de 30 anos antes. O círculo entrou em colapso, decretou-se “o fim da Nova República.” À parte de preocupações exclusivamente econômicas, onde seu “Posto Ipiranga” se dedicaria a uma agenda dos anos 1990, de todo insuficiente e ultrapassada, Jair Bolsonaro só poderia mesmo entregar retrocessos. Era sua missão.

Em 2022, o ciclo virtuoso da história resistia a forças que o queriam fazer retroceder. Ainda mais um tanto. Felizmente, a visão de horrores assustou e dividiu a sociedade. O retrocesso foi vencido por pouco. A agenda histórica de 2018 pode ser retomada em 2023.

Lula: desafios explícitos e encobertos

Há generosos sinais de que esses desafios importam: de 1985 a 2018, seis presidentes da República foram eleitos direta ou indiretamente – Tancredo/Sarney, Fernando Collor, FHC, Lula, Dilma e Bolsonaro –, restando em maior ou menor sucesso. Tiveram destinos tão diversos quanto a compreensão que expressaram do processo.

Três deles (Sarney, FHC e Lula) os compreenderam e cumpriram mandatos satisfatoriamente, do ponto de vista histórico, em relação aos objetivos a que se propunham. Desses, dois foram reeleitos quando isso passou a ser possível. Ao contrário, dois – Collor e Dilma – sofreram impeachments. E, outro, ao se colocar do lado obscuro da história (Bolsonaro) concluiu mandato, sem ser reeleito, restando hoje em vias de acertar contas com Justiça e com a História.

Os desafios do terceiro mandato do presidente Lula implicam, primeiro, na retomada dos desafios de 2018: a necessidade de um pacto político e social capaz de estabelecer a pacificação do país. Recompor pontes e linhas de diálogos, se não com o radicalismo bolsonarista, pelo menos com suas áreas de influência e setores que dele se aproximaram em razão das restrições que fazem ao PT.

Luiz Inácio Lula da Silva, acena para apoiadores ao chegar com sua esposa, a primeira-dama Rosangela 'Janja' da Silva, o novo vice-presidente Geraldo Alckmin e sua esposa Maria Lucia Ribeiro Alckmin, no Palácio do Planalto, após a cerimônia de posse no Congresso Nacional, em Brasília, no dia 1º de janeiro de 2023. Foto: Carl de Souza/AFP
Luiz Inácio Lula da Silva, acena para apoiadores após a cerimônia de posse no Congresso Nacional, em Brasília, no dia 1º de janeiro de 2023. Foto: Carl de Souza/AFP

Em resumo, retomar o ciclo histórico virtuoso que de maneira mais ou menos torta se dava desde 1985. Este é o aspecto mais claro, explícito, da missão do terceiro mandato.

Mas, há problemas profundos ainda encobertos pelo próprio fluxo histórico em andamento. É o desafio-enigma, história-presente, que exige ser decifrada. Questões despertadas a partir da revolução científica e tecnológica vinculadas a uma nova ordem em formação que coloca todo o planeta em estado de apreensão econômica, social e militar.

O fato é que, nesses quase cem dias, o governo de Lula ainda não encontrou seu desafio histórico, embora esteja no ar e pulse na tensão das ruas. Seja no aspecto mais claro, explícito, seja naquilo que historicamente ainda se encontra encoberto, Lula parece tatear o presente com olhos de passado.

Verdade que até aqui tem feito o importante trabalho de recuperação de políticas e disposições públicas fundamentais, paralisadas ou destruídas pelo governo de Jair Bolsonaro. Não é pouco. Na economia, o importante esforço do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de recuperar a higidez e a confiança nas finanças públicas configura importante agenda que nos próximos meses ocupará a preocupação do Executivo, do Legislativo e do mercado financeiro. Trata-se de um alicerce que, sem o qual, nada mais será feito.

Mas, mesmo assim, isso não configura um projeto histórico com visão mais ampla e penetrante em relação ao futuro, capaz de refazer o caminho e restabelecer o círculo virtuoso inaugurado em 1985. A chamada questão fiscal pode ser condição sine qua non, mas não é o bastante.

Retomar o desafio histórico político – a repactuação política e social do Brasil – depende muito da disposição, da sagacidade e ousadia da liderança política de Lula, um Príncipe solitário neste momento.

Em 2003, o desafio estava posto e se afigurava como uma linha histórica de natural aperfeiçoamento institucional e democrático. Bastava observar e dar sequência ao andamento do processo iniciado por Tancredo/Sarney, em 1985: democracia, fim da inflação, estabilidade econômica. Avançar em direção à inclusão social.

Em 2023, tudo parece mais difícil: compreender e reatar fios rompidos no impeachment de Dilma Rousseff, construir o melhor diagnóstico a respeito das questões derivadas da grande transformação que envolve toda a humanidade. Dar vida ao novo. É missão para um estadista, coisa rara na humanidade.

Sim, antes dar soluções simples a questões complexas, a principal equação a resolver será desvendar quais são, afinal, os desafios históricos deste tempo: que tipo de desenvolvimento econômico, quais políticas necessárias para isso – educação, meio ambiente e clima, ciência e tecnologia, infraestrutura, por exemplo. Decifrar seus enigmas; gerir o governo e conduzir o sistema político a partir dessa agenda histórica. Fazer história. É isso.

(Ou se perder no labirinto, deixando-se devorar pelo Minotauro que destruiu Fernando Collor e Dilma Rousseff)

*Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.

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