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Do sarcasmo às pautas bombas do tempo

Lira e seus operadores encurtam o tempo de Lula. Precisam fincar um novo Ciro Nogueira no coração do Palácio. É clara a tentativa de instalar um tipo de “bolsonarização do governo, sem bolsonarismo”

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA15 de jun. de 239 min de leitura
Deputado brasileiro Arthur Lira cumprimenta deputados após ser reeleito presidente da Câmara dos Deputados no Congresso Nacional, em Brasília, em 1º de fevereiro de 2023. Foto: Sérgio Lima/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias15 de jun. de 239 min de leitura

No jardim dos deboches, a ironia é uma fina flor escondida após os arbustos de sarcasmos. Fica entre um pé de escárnio e outro de caçoada. Está diante das falácias, que têm ao fundo uma ramagem de logros. Passando distraído pelo jardim, o andante atola os pés no mangue da política contemporânea. À direita, há ali um umbral para a floresta desencantada brasileira.

Compõe a fauna do lugar o União Brasil, espécie de búfalo partidário pleno de lideranças fundamentais para o processo democrático. Geniais formuladores de políticas econômicas e sociais, cuja contribuição para o desenvolvimento político do país é inestimável. Inestimável, como as ironias por detrás de cada sarcasmo.

Esse espécime raro de obstinação e realizações, junção do DEM com o PSL, deu-se ao direito de pressionar o governo do presidente Lula por mais cargos no ministério, iniciando o inevitável processo de reforma do governo, sujeitando-o aos inevitáveis horrores da floresta escura, em que Lula enfrenta, a cada dia, o leão da Câmara dos Deputados. 

Como Alice, perdidos nessa floresta, estão líderes e prepostos do governo. Correndo de um lado para o outro, encontram um gato com o sorriso de Lira. “Onde esta estrada vai dar?”, perguntam. “Para onde querem ir?”, ele questiona. Não sabem. “Ora, para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve”, conclui o gato mestre.

Na noite da vitória eleitoral, Lula e o PT dormiram o sono da ilusão. Acordaram, meses depois, com os estrondos de uma sinfonia de pesadelos que, sem saber, ajudaram a compor. O PT é só um violino de menor potência afinado pela nota “lá” do oboé tocado por Arthur Lira.

Nos dias escuros dessas transformações históricas, só as metáforas iluminam. Perdoem se delas abuso. Ter como protagonistas atores como os da atual política nacional é de lascar. Impossível ser original em tempos em que o real supera a ficção das óperas bufas. Que os deuses das metáforas nos deem, pelo menos, um pouco de graça.

Enfraquecimento da governabilidade

Pior seria estar nos sapatos do presidente da República. Intimamente convencido ser “o melhor da história deste país” – para usar sua locução –, Lula se vê diante dos ossos de um ofício depauperado pelo tempo, que perdeu charme e poder nos últimos anos. Anos de Jair Bolsonaro. No momento, o que lhe resta – na metáfora de José Sarney – é ser “o síndico da catástrofe” do sistema político.

Não se trata de grandes planos, ideias ou que instrumento tocar no concerto das nações. Mas, se debruçar sobre a mais ordinária das atividades de um presidente: gerenciar ele próprio a lógica voraz de pequenas e médias barganhas, de efeitos deletérios, que assumiu o centro e a racionalidade do sistema. 

O União Brasil é parte disso. Noutro tempo, dispensável e irrelevante. Imprescindível hoje. Expressiva imagem do precipício em que se jogou a liderança política.

Como se sabe, a frente de Lula não atingiu o imperativo dos 171 votos na Câmara, que o acalmaria fantasmas do impeachment. Noutros tempos, tal era o poder do governo, quadro assim seria impensável. O Poder Executivo que, no Brasil, sempre foi o centro do sistema, hoje parece impotente. 

Sim, reequilibrar forças é saudável. Mas, a lógica se alterou e novo desequilíbrio se fez. Na Folha de S. Paulo de domingo, com competência e sofisticação que lhe são peculiares, Sérgio Abranches demostrou que “mudanças estruturais e comportamentais enfraqueceram o Executivo e dificultam a governabilidade”. É material para usar em sala de aula.

Sem coalizão que lhe garanta a governabilidade e a iniciativa, o presidente tornou-se reativo. Coalizão agora montada a partir de interesses individuais é que possui o governo e o submete. Na Praça dos Três Poderes, antigas relações de suserania e vassalagem trocaram de prédio.

O impedimento de Lula, é claro, não é o que mais interessa a Arthur Lira e a seus exigentes companheiros de Centrão. Mais lhes serve e mais os agrada um presidente frágil, um pato-manco sem ação – “vem que te quero fraco, vem que te quero tolo, vem que te quero todo meu”. 

Ficam com o bônus do controle da máquina, sem o ônus de ser governo. Acordo vantajoso para o Congresso, assombração dos sonhos de Lula. Os ganhos políticos nos currais são dos parlamentares, a tragédia eleitoral fica com o governo.

À diferença de Dilma

A história como exemplo e lição: em “Dilma versus Cunha”, é necessário compreender o processo. Antes do tsunami do impeachment, a tempestade perfeita nasceu de pautas bombas montadas no Parlamento, encaminhadas por Eduardo Cunha, instrumentando-se do mercado. 

Essas pautas bombas realmente podem arrasar quarteirões da economia. Nos tempos de Dilma, se a economia vinha mal, pior ficou.  Mais vulnerável a presidente se tornou. No horizonte, a ingovernabilidade abriu os braços como quem se agacha para acolher uma criança que corre em direção contrária. Dilma se deixou abraçar. 

Por que agora haveria de ser diferente se o quadro é semelhante? Um governo debilitado por uma eleição desagregadora, vitória eleitoral apertada, minoria constrangedora no Congresso. Oportunismos a granel reunidos no atacado. Pressão da economia. Várias e simultâneas frentes de conflito, inexistência de estado-maior, vazios de estratégia. Voracidade fisiológica, sistema antirrepublicano. Um opositor frio e sagaz.

A diferença reside no perfil do presidente da República: forjado em processos de negociação sindical, partidária e política-parlamentar, Lula é, e sabe que precisa ser, flexível. Embora contribua para parte da própria vulnerabilidade, entende necessitar de tempo. A economia pode melhorar e a sorte, que nunca lhe faltou, pode incrementar a popularidade, robustecendo a resistência, permitindo a recuperação do poder e da centralidade perdidos. 

Lira, bolsonarização sem bolsonarismo

Mas, ao Centrão inteligência estratégica não falta: Lira e seus operadores encurtam o tempo de Lula. Procuram retirar já o que talvez mais tarde não seja possível. Precisam fincar um novo Ciro Nogueira no coração do Palácio, coordenar eles próprios o governo. Tendo-o em mãos, garantir a autonomia conquistada com o orçamento secreto. 

É clara a tentativa de instalar um tipo de “bolsonarização do governo, sem bolsonarismo”. O desenho é o mesmo. O quadro na Saúde de Bolsonaro: os processos e licitações suspeitas, nebulosas tentativas em compras de vacina; tudo o que mais se soube e ainda não se sabe. O controle da Casa-Civil. Jogar Dani do Waguinho ao mar traz prejuízos evidentes, mas é tentativa de salvar o barco.

O alvo não é exatamente Lula. Mas, independentemente de seus muitos erros e Rui Costa, a Casa-Civil. 

As cartas nas mãos de Lula não formam um par. Não há alternativa a ceder. Melhor fazê-lo por menos que por mais. Assim, vão-se os anéis do ministério do Turismo, joias e adereços aqui e acolá. Preserva-se, por enquanto, os dedos da Saúde e da Educação; autarquias, fundos e fundações, a Casa-Civil, o núcleo do governo. 

Bombas fora da economia

Lula não é Bolsonaro e, óbvio, resiste. Tampouco quer ser Dilma. Como não consegue ser o Lula dos primeiros mandatos, entre erros e acertos, compra tempo. Mas, gera apreensão e estranhamento. De onde se esperava caos, a economia, houve contemporização. Onde o governo supostamente nadaria de braçada, a política, o mar ficou revolto. 

Indaga-se sobre essa grande contradição. Mas, é apenas a dialética de Lira a seu modo: desenvolvimento desigual e combinado. A paz na economia dá a Lira os ares de estadista com que desfila em parcela dos salões da elite. Uma nota de três reais. De todo modo, adquire blindagem que lhe permite, com menor constrangimento, liderar o Centrão de sempre, com métodos e voracidade conhecidos. 

A satisfatória tramitação do arcabouço fiscal e, quem sabe, da reforma Tributária dá energia e gordura de elogios para queimar na crítica do exercício fisiológico. Esses projetos não são seus – são frutos de longo acúmulo –, mas a civilidade com que se apresenta ao aprová-los o faz seu pretenso fiador. 

O presidente da Câmara, Arthur Lira, gesticula durante sessão da câmara dos deputados em Brasília, em 13 de julho de 2022. O Congresso do Brasil aprovou na quarta-feira uma série de medidas propostas pelo governo de Jair Bolsonaro que aumentam gastos e criam novos benefícios sociais até o final de o ano, na tentativa, segundo analistas, de melhorar a popularidade do presidente 81 dias antes das eleições. Foto: Sérgio Lima/AFP
O presidente da Câmara, Arthur Lira, gesticula durante sessão da câmara dos deputados em Brasília, em 13 de julho de 2022. O Congresso do Brasil aprovou na quarta-feira uma série de medidas propostas pelo governo de Jair Bolsonaro que aumentam gastos e criam novos benefícios sociais até o final de o ano, na tentativa, segundo analistas, de melhorar a popularidade do presidente 81 dias antes das eleições. Foto: Sérgio Lima/AFP

Nesse sentido, o discípulo supera o mestre. Vinho da mesma pipa, Lira apresenta certo amadurecimento em relação a Eduardo Cunha: sua pauta bomba não estoura na economia. Tendo os mesmos objetivos do antecessor, é ali que obtém prerrogativas e liberdades para armar mísseis que direciona ao Planalto e ao Alvorada. Não para a Faria Lima.

Mas, Lira também não vive ele próprio, tempos de paz. Está num contexto de guerra contra vários inimigos. Ter que se haver com Renan Calheiros em seus calcanhares, a Polícia Federal, o Ministério Público e, no futuro, um Lula fortalecido não é algo que o faça dormir tranquilo. O fraco quando forte esquece o bem, mas jamais o mal que lhe fizeram.

Seu poder não é infinito. Ao seu tempo, quanto melhor a economia estiver, melhor reagirá a popularidade de Lula – kryptonita para Lira. Há uma relação inversa entre ambos. Com melhoras incrementais na popularidade, o poder de atração do Executivo sobre o sistema político torna a se fortalecer. A sorte de Lula, a história ensina, não pode ser subestimada. 

Tudo o que necessita é calma – e parar de errar, é claro. Pois, também para o presidente da Câmara não há equação simples para continuidade do status presente. Se a bomba relógio que agita seu sono está na melhora econômica, o que poderia fazer para retardar o processo, após se apresentar com um facilitador da própria economia? Reclamará a paternidade do filho bonito.

Quanto mais acirradas as disputas, mais a ampulheta da política acelera o tempo. É preciso ser frio: não delongar, nem se precipitar. Timing é arte. Se a economia melhorar mesmo, como dizem alguns economistas – não sei se acredito –, as pressões de e sobre Arthur Lira se elevarão. Ele, claro, reagirá e mais tensão virá pela frente. Assim, o ambiente deve piorar bastante, antes de começar a melhorar.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

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