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Ensaio de reforma

A entrada do Centrão no governo é promessa de pagamento com resgate futuro, mais do que quitação à vista por serviços prestados, e mostrou os limites da liberação de emendas ao Congresso

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA7 de set. de 235 min de leitura
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, conversam durante a assinatura da nova lei que aumenta o reajuste anual do salário mínimo no Palácio do Planalto, em Brasília, em 28 de agosto. Foto de Evaristo Sá/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias7 de set. de 235 min de leitura

Mais uma vez, a reforma ministerial. Tema repetido, encruado, arrastava-se há pelo menos dois meses. O presidente Lula a usou – e tem usado – antes como promessa de pagamento com resgate futuro do que quitação à vista por serviços prestados. Comprando tempo e adiando o inevitável desgaste, o governo procurou satisfazer Arthur Lira e seus rapazes com farta liberação de emendas. Colheu a aprovação do arcabouço fiscal e da reforma tributária. Mas, essa fase foi esgotada. 

A liberação de emendas é fundamental, mas no agregado é também paliativo já que o Centrão não se ajusta com filas dependentes da dinâmica e da boa vontade de cada ministro. Quer o ministério de porteira fechada para fazer o que seus operadores e alguns analistas ainda chamam de “política”: distribuir sinecuras, controlar diretamente o orçamento; os processos de compras, licitações e despesas as mais variadas.

Lula é, obviamente, muito diferente de seu antecessor. Bolsonaro não tinha gosto pela negociação: ou impunha sua delirante vontade sem foco e projeto ou simplesmente cedia diante de resistências e ameaças. Forjado nas infinitas idas e voltas dos acordos coletivos entre patrões e empregados, nos anos 1970, sob o tacão do regime militar, o timing de Lula é outro: Cassius Clay cansando o adversário mais forte. Sujeito, no entanto, a um cruzado fatal na ponta do queixo.

Não há delonga que nunca acabe. Mesmo Penélope terminou de tecer seu véu. Mudanças no ministério foram finalmente confirmadas. Não é bem reforma. Assemelha-se mais a um ensaio de reforma. Difícil afirmar se essa conta bastará para acalmar consumidores exigentes que pagam o governo com votos no Congresso e garantir, assim, a governabilidade sustentável com o apoio da maioria. 

Membros do PP e do Republicanos – não exatamente os partidos – passam a compor o governo. Os partidos ainda hesitam a formalizar. Ciro Nogueira, presidente do PP, precisa garantir a sua fama de bolsonarista sinceramente convertido, uma vez que ocupou a Casa Civil de Bolsonaro. No Republicanos, a equação não fecha quando se considera o nome do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, como adversário futuro de Lula e do PT.

Assim, André Fufuca (PP-MA) vai para o lugar Ana Moser, no ministérios do Esporte. Dor-de-cabeça certa. Menos pelo nome estranho do ministro do que pelo retrocesso e pela decepção que a mudança representa. Estrelas do mundo desportivo orbitavam em torno de Bolsonaro. Esportistas progressistas enfrentaram colegas e muita gente do meio; expuseram-se no apoio eleitoral a Lula, que lhes prometeu uma nova mentalidade para o setor.

Com o PP na pasta, nova mentalidade é pouco provável. A voracidade por cargos e recursos não combina com uma concepção do esporte como elemento de desenvolvimento e inclusão social. O velho populismo de extensão paroquial, com que o esporte quase sempre foi tratado no Brasil, já vislumbra a criação de diversas novas diretorias.

Outro desgaste: Ana Moser é figura de proa entre atletas, jornalistas e dirigentes do esporte vinculados à democratização da área. A ex-campeão de vôlei tem currículo, apelo, história e muitas conexões. Se não fosse por outros predicados, Lula também perderá o capital simbólico de mais mulheres no governo. Nesse caso de Ana Moser, a representatividade no setor mais a presença feminina no ministério somam bem mais que dois. Trata-se de uma pessoa especial.

No centro do poder: deputado Arthur Lira discursa após ser reeleito como presidente da Câmara dos Deputados no Congresso Nacional em Brasília, em 1º de fevereiro. Foto de Sergio Lima/AFP

Desastre de comunicação

Pior ainda que, num desastre de comunicação, nenhum afago tenha sido feito à futura ex-ministra. A ferida levará tempo para fechar – se é que será fechada no futuro.

No ministério de Portos e Aeroportos, a retirada de Márcio França para acomodar Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) será um tanto menos sentida. Afinal, França é um veterano da política, indicação do PSB. A despeito da choradeira inevitável, nesse ambiente as coisas se ajeitam com compensações de espaços em outros ministérios. Desgaste, mesmo, será no Esporte. 

Verdade que, ovelhas desgarradas, Fufuca e Costa Filho apoiaram Lula na eleição, nadando contra a forte corrente bolsonarista em seus partidos. Isso é pouco lembrado, até porque na batalha de comunicação entram no ministério como nomes impostos pelo Centrão – o que nunca é um bom cartão de visitas aos olhos da opinião pública. Uma vitória creditada a Arthur Lira, que ainda deve morder outras beiradas do governo.

Ninguém poderá afirmar se o arremedo de reforma será o suficiente, se dará certo ou não. Diante da rudeza de Arthur Lira ou do apetite do Centrão, nada é muito previsível. A voracidade fisiológica não se acalma com pouco. Nem mesmo com muito, por isso mesmo voraz. Mas, no presidencialismo de coalizão – ou multipartidário – do Brasil, ceder é inevitável. 

O quanto e como ceder é o que distingue os governos fracos dos mais robustos. Realpolitik de inevitáveis concessões à realidade ou cair de joelhos? Eis a questão. Já no curto prazo saberemos. O Centrão é um organismo que precisa fazer dúzias de refeições por dia. Alimentá-lo dá trabalho e custa caro. O rugir de seu estômago será novamente ouvido em breve.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.

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