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Lula na ONU: a homilia de um velho sacerdote

Lula conversou também com o Brasil, dizendo coisas que o país precisava mesmo ouvir, pois a tacanheza da oposição e do senso comum já andava a dizer que “Lula viaja muito”

Carlos Melo, para Headline Ideias
#ONU21 de set. de 237 min de leitura
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante abertura do Debate Geral da 78º Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, Estados Unidos, em 19 de setembro de 2023 Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Carlos Melo, para Headline Ideias21 de set. de 237 min de leitura

Pronunciamentos de presidentes desta República nas tribunas da Assembleia Geral das Nações Unidas são supervalorizados no Brasil. Um traço do velho colonialismo. Mas, na maioria das vezes, são amontoados de questões desconexas para o público interno. Eventualmente, produzem vergonha, comprometendo a imagem e a inteligência do país. Foi o caso de Jair Bolsonaro nas ocasiões em que passou por lá.

Nada disso, no entanto, pode ser afirmado em relação ao discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pronunciado na Assembleia Geral deste ano. Desta vez, o presidente – até mais do que em 2003 – falou para o mundo a respeito do próprio mundo; tentando demonstrar sua precariedade, sua desarrumação geral, após anos de equívocos que foram sendo empilhados pelo tempo. É possível que tenha feito Política com “P” de História.

E, assim, Lula conversou também com o Brasil, dizendo coisas que o país precisava mesmo ouvir, pois a tacanheza da oposição e do senso comum já andava a dizer que “Lula viaja muito”, que “abandona o Brasil nas mãos de Geraldo Alckmin”. Bobagens e preconceitos, não fazem sentido. 

Primeiro, porque o momento exige: vive-se um processo de transformações estruturais em quase todas as áreas senão todas. Mudanças avassaladoras que desarranjam todo o xadrez mundial. Não há o que possa ser resolvido isoladamente, nos becos de um só país. 

Naquilo que pode ser uma espécie de Mundo-Titanic, o Brasil precisa se jogar ao mar se não quiser morrer afogado.

Em segundo lugar, porque resgatar a imagem do Estado e de uma respeitada diplomacia, após o desastre de Jair Bolsonaro, é tarefa que demanda mesmo queimar sola de sapatos e rodar o mundo. Pedir desculpas pelo vexame do “tiozão do churrasco”. Refazer laços e subir num novo navio que está zarpando a caminho de nova ordem global. Não perder, mais uma vez, o barco, como tem sido comum.

A revolução tecnológica dos últimos quarenta anos vem liquidando a sociedade industrial como a pudemos conhecer. Gerações viraram suco. Mundos desmoronaram com profissões, empregos, referências e respeito desmanchados no ar. Precarizou-se a vida. E nada restou a uma autoestima balada do que chamar a desproteção a que se viu obrigada de empreendedorismo, vulgarizando o sentido.  A uberização é o símbolo de um tempo líquido.

Em paralelo, um espírito do tempo abominou o Estado que –no delírio da loucura dogmática e sectária – deveria deixar de existir. O mercado seria – sem jamais ter sido – a instância máxima de produção de equilíbrios sociais estabelecidos por uma mão antes inexistente do que invisível. 

Se Estado em excesso é prejudicial e disfuncional – e realmente é , Estado de “menos” é um desastre: sem qualquer tipo de coordenação da ação individual, faltará solidariedade e coesão sociais. Um pesadelo para quem, sem saber, foi atropelado pela história. É o “encurralamento” de que falava Charles Wright-Mills, em “A Imaginação Sociológica”.

Estados precisarão de novas e modernas políticas públicas, mas elas já não podem ser feitas sem sintonia aos níveis regional e mundial da articulação de vários Estados nacionais. Nunca, desde o final da Segunda Guerra Mundial, organismos multilaterais, como as Nações Unidas, fizeram tanta falta. Ao mesmo tempo, nunca a ONU e congêneres foram tão desprezados em razão da incompreensão e do ressentimento de tiranetes  

Lula falou de quase tudo que realmente importa: meio ambiente e responsabilidade dos países desenvolvidos, formação de blocos econômicos, desigualdade social e racial. Fome. Democracia. Paz mundial. Deu uma série de recados e sinalizou para a possibilidade de vários acordos. Colocou o Brasil no centro do debate. O Brasil voltou.

Soube manter-se equidistante dos vários conflitos de interesses, evitou alinhamentos automáticos. Buscou, antes de tudo, o interesse do Brasil, o que, aliás, é tradição da política externa nacional. “Países não têm amigos, têm interesses”. E assim foi.

Não deixou de ser surpreendente. O presidente vinha dando seguidos tiros no pé com declarações de pouco cuidado, exageros e absurdos acerca de temas delicados, como a guerra da Ucrania, o regime venezuelano, a rudeza e a impetuosidade de Vladmir Putin. 

Havia receio que Lula tivesse se perdido de Lula, que tivesse sucumbido à tagarelice e à tolice ideológicas de novos e velhos companheiros.

Mas, excessos retóricos à parte, o pragmatismo deu o tom do pronunciamento, que foi amplamente elogiado dentro e fora do Brasil. Comentando o discurso, Michel Temer disse a um amigo em comum que “o exercício do governo corrige problemas e defeitos da visão meramente ideológica”. Bem observado. Se não for um louco desvairado, quem tem governo tem medo.

Desdobramentos

Coincidência ou não, Lula não destoou do que disse Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, que falou à Assembleia logo após o brasileiro. Têm mais em comum do que o antiamericanismo infantil gostaria de admitir. Em grande medida, não destoaria da maioria dos mais sensatos líderes europeus e, provavelmente, tangenciaria até mesmo Ji Xinping, o mandachuva chinês.

Lula ao lado do diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho, Gilbert Houngbo (D), observa a fala do presidente dos EUA, Joe Biden, durante o lançamento da Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores, à margem da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, em 20 de setembro de 2023. Foto: Jim Watson/AFP
Lula ao lado do diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho, Gilbert Houngbo (D), observa a fala do presidente dos EUA, Joe Biden, durante o lançamento da Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores, à margem da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, em 20 de setembro de 2023. Foto: Jim Watson/AFP

Lula saltou várias casas. Já há desdobramentos do discurso que são igualmente interessantes, potencialmente promissores. 

No final do mesmo dia, um jantar no Fasano, de Nova York, promovido pela FIESP, reuniu em torno de Lula pesos pesados da economia mundial. Ladeado pelas mais importantes autoridades brasileiras – os presidentes da Câmara e do Senado, por exemplo – o presidente deu sinais de força e unidade. 

Embalados pelo discursos na ONU, de acordo com a imprensa do Brasil, o clima foi de otimismo e interesse em novos investimentos. Lula “vendeu Brasil”. 

Seu governo tem notórios vazios programáticos; também o sistema político brasileiro, fisiológico e envelhecido, é um fator de desalento. Ainda assim, o movimento mundial, em que pesem tropeços verbais de Lula, parece atrair o presidente para o centro de acontecimentos que, se são de grandes riscos, são igualmente de enormes oportunidades.

Pode-se argumentar que, há exemplo do início da década de 2000, Lula estaria mais uma vez se favorecendo de fatores externos, superiores a ele e ao Brasil, como foi, então, a emergência da China. Apenas um “sujeito de sorte”, como o depreciavam, despeitados, os tucanos da época. 

O próprio Lula admitiu, certa vez, carregar ao longo da vida uma grande dose de sorte, sim. Saiu-se com esta: “e vocês queriam o quê: um presidente com azar?” A despeito dos quereres, é preciso admitir que a fortuna não bate duas vezes na mesma porta se não houver pelo menos um naco de virtude. 

Ironizando seus detratores, o presidente diria mais tarde. “Como fui um bom menino, peço toda noite a Deus. E ele me atende”. O fato é que Lula tem compreendido as linhas tortas dos catecismos destes dias de estupefação e transformação vertiginosa. Sem ter sido um sermão, seu discurso na ONU foi um primor, como uma homilia de um velho sacerdote versado nos segredos dos santos.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

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