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Lula: sua reputação e sua incontinência verbal

O presidente constrói sua reputação internacional desde os tempos de sindicalista. Nem os dissabores com a Lava Jato abalaram a opinião pública mundial a seu respeito. Lula recebeu o benefício da dúvida. Mas isso tudo pode se dissipar

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA25 de abr. de 2310 min de leitura
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, com um cravo vermelho, participa da sessão de boas-vindas no Parlamento Português, em Lisboa, por ocasião da comemoração do 49º aniversário da Revolução dos Cravos. Foto: Patrícia de Melo Moreira/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias25 de abr. de 2310 min de leitura

Reputação, qualquer um tem. A questão é que tipo de reputação o sujeito carrega. Construí-la é um esforço de anos. Mantê-la é trabalho que nunca termina, nem mesmo com a morte. Pois, “no Brasil até o passado é incerto”, como já disse o ministro Pedro Malan. Comprometer ou perder tudo o que se alcançou nesse campo é de constrangedora facilidade. Uma fake news, uma declaração impensada e infeliz, a maledicência, uma investigação da imprensa – o inferno são os outros... Para machucar uma reputação basta a chuva fina.

O presidente Lula constrói sua reputação internacional desde os tempos de sindicalista, quando passou a interagir com pares na Europa e nos Estados Unidos, assim como com lideranças políticas de diversos partidos social-democratas e de esquerda. Já no início dos anos 1980, ocupou a cena como um líder brasileiro democrático e progressista. Durante seus dois mandatos, consolidou essa imagem. Nem os dissabores com a Lava Jato abalaram a opinião pública mundial a seu respeito. Por conta de sua reputação, Lula recebeu o benefício da dúvida.

Mas, isso tudo pode se dissipar. Ainda mais quando o próprio dono da reputação sai em carreira desandada a dar tiros de carabina nos próprios pés e comprometê-la com afirmações de ocasião, emitidas para agradar a audiência do momento – falar para o público que o cerca sem compreender que não há cerca no mundo atual tem sido um desastre para Lula. 

Há considerações que o indivíduo sequer deve pensar, justamente para não correr o risco de fazê-las e dizer o que não se diz. A incontinência verbal é um bumerangue que volta à testa de quem o lança no ar.

Da irritação a declarações aparentemente apressadas

Tem-se notado o espírito irritadiço e belicoso do presidente da República, algo incomum para Lula, que tem abandonado a leveza e o comedimento dos mandatos anteriores. Aliás, esse tem sido o elemento, talvez, mais surpreendente desse terceiro mandato. Dizem que Lula tem pressa, cobra e fala muito porque não quer perder seu tempo cada vez mais escasso. Quer acertar rapidamente, e isso não é ruim. Mas, o mais recomendável a quem tem pressa é agir devagar. Refletir sobre o que fazer para não necessitar refazer.

As declarações de Lula colocando Rússia e Ucrânia no mesmo patamar de agressão e responsabilização na guerra entre aqueles países causaram todo tipo de estranheza possível. Seja em relação à posição do Brasil quanto ao conflito, mas principalmente quanto à suspeita de surpreendentes ligações (perigosas) com a Rússia de Vladimir Putin, o grande autocrata mundial.

Não é possível ignorar contatos entre os governos brasileiro e russo, visitas de dirigentes do PT à moçada do Kremlin. Nem esquecer que nos dias que seguiram às declarações do presidente, o Brasil recebeu, quase com tapete vermelho, a visita de Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa – um dos mais próximos e fiéis a Putin –, que assinalou “similaridade” de visão entre os dois países no que se refere ao conflito armado.  

Situações paradoxais têm demarcado o governo nesses primeiros meses, ocasionando prejuízos evidentes. (Escrevi sobre isso recentemente). Lula se viu diante de um deles: sua reputação de democrata foi como que vista andando de mãos dadas com a autocracia. O estranhamento é enorme e cria uma grossa camada de desconfiança entre o atual mandato e os vários segmentos de elite, sobretudo, a imprensa.

Em visita a Portugal, o presidente teve que morder a língua e sinalizar um recuo em relação às declarações sobre a guerra. Disse que não disse o que de fato disse. Em Jair Bolsonaro isso se dava dia sim e dia também. Mas, não causava desconcerto e polêmica. Bolsonaro é Bolsonaro e Lula não é Bolsonaro. Nem terá a indulgência que se dá aos inimputáveis – como o ex-presidente foi tratado na maior parte de seu governo.

Diante da imprensa brasileira e europeia, sua negação foi mal menor – a visita a Portugal não pode ser resumida a isso –, mas causou discreto constrangimento em seu colega Marcelo Rebelo de Souza, presidente daquele país, que, sem poder contemporizar, viu-se forçado a reafirmar a posição europeia, de condenação à Rússia. Não poderia ser de outro modo. 

A Europa sente-se novamente preocupada em ver se repetir o risco crescente de um cenário de brutal destruição que, somente no século passado, arrasou o continente duas vezes. Até em virtude disso, as declarações do sempre bem recebido Lula foram sentidas pela imprensa e pela diplomacia europeia como algo entre a surpresa e a decepção. A excelente reputação internacional do presidente foi arranhada. Não será simples recuperá-la do desgaste.

Nos últimos dias, um passapanismo militante e indisfarçável quis fazer crer que tudo não passara de mais uma jogada genial de Lula, elevado agora à condição de uma nova espécie de “pai dos povos”. Isso porque, no contexto das críticas às declarações do presidente, surgiram anúncios da liberação de US$ 500 milhões, feita pelos Estados Unidos ao Fundo Amazônia, assim como da disposição da chinesa Shein em investir R$ 750 milhões no Brasil. 

Ora, ora, ora... Nada permite afirmar haver ligação direta entre os fatos. Ademais, o desgaste da política externa nacional seria absolutamente desnecessário para atrair esses investimentos nesses valores. Convinha antes cobrar de público o compromisso assumido pelos norte-americanos. Assim como fazer os chineses perceberem o estrago que suas lojas digitais fazem na indústria e no comércio nacionais.

A questão supera o interesse econômico. É política

A questão é muito mais delicada, infelizmente. As declarações de Lula, de algum modo, colocam sobre a mesa a avaliação feita pelos petistas a respeito do reordenamento político internacional e de um novo alinhamento de forças que, de fato, estão em curso. Um antiamericanismo atávico, sempre revisitado, tenta fazer acreditar que Brasil estaria mais bem colocado e protegido num bloco hegemonizado pela China. Busca-se um realinhamento automático, abandonando a tradicional postura diplomática brasileira, é isso?

Esse tipo de visão – de parte do PT e parte do governo – faz sentido apenas até a página 5. Economicamente, a mudança na “Balança de Poder” é relevante. Parceiros comerciais do país – identificados como “emergentes” – estão no olho desse furacão, são os tais Brics a quem o Brasil está amarrado. 

A expansão de negócios do comércio nacional com esses países já é mais que concreta e a atração de investimentos em diversos setores nacionais já é mais que uma possibilidade. De fato, nenhum governante pode ser criticado por buscar vantagens econômicas para seu país. O problema está além disso: o alinhamento político com governos autocráticos. 

No enfrentamento contra Jair Bolsonaro – o projeto autocrático que procurava se estabelecer no Brasil –, Lula recebeu consistente apoio de autoridades norte-americanas e europeias; o aliado com quem Bolsonaro contava era a Rússia. Além, é claro, dos interesses geopolíticos e comerciais, lideranças nos dois continentes viam com preocupação que um país com a dimensão e o potencial brasileiro pudesse vir a fazer parte desse planeta autoritário. 

Em vários quadrantes do mundo, a democracia ainda é um valor humano inestimável, um patrimônio da humanidade. 

Não é, portanto, um disparate afirmar que sem o apoio norte-americano e europeu a disposição golpista do bolsonarismo encontraria muito menos resistência e melhores condições para impedir a vitória, a posse ou o governo de Lula. É no mínimo constrangedor que, depois de eleito, empossado e garantido, o presidente se manifeste com declarações, senão hostis, pouco cuidadosas – nada diplomáticas, para dizer o mínimo. A provocação é inevitável, desculpem: muito mal comparando – mas, muito mal mesmo – esse tipo de derrapada para fora da pista faz lembrar as barbeiragens dos tempos de Ernesto Araújo.

Democracia em crise

A questão da democracia mundial é delicadíssima e precisa ser colocada em debate. Importante material do Estadão, do último domingo, veio a calhar e é absolutamente providencial a esse respeito. 

De acordo com o relatório anual do sueco V-Dem Institute, “os níveis globais de democracia caíram em 2022 para patamares mais baixos do que em 1986 e o número de Estados comandados por ditaduras se tornou maior do que o de democracias plenas pela primeira vez desde 1995”. Na tipologia construída pelo V-Dem sobre os diversos tipos de países, o Brasil está classificado como “Democracia Falha”. 

Difícil discordar quando se viu e se tem consciência do que o país passou na última década. Sobretudo, os retrocessos evidentes nas mais diversas áreas ao longo do mandato de Jair Bolsonaro. Trata-se, portanto, de uma realidade. Mas, também de uma situação a ser superada. 

Essencialmente, Lula foi eleito para isso. Muitos eleitores que não morrem de amores pelo PT e seu estilo engoliram a contrariedade e sufragaram o nome de Lula. O voto no petista foi um grito em defesa da democracia e tudo o que isso acarreta: respeito à instituições, à lei; a luta pela erradicação dos mais diversos tipos de miséria. 

Deputados do partido de extrema-direita portuguesa Chega mostram cartazes contra o presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva (C) quando ele sai durante a sessão de boas-vindas no Parlamento Português em Lisboa, na comemoração do 49º aniversário da Revolução dos Cravos. Foto: Patrícia de Melo Moreira/AFP
Deputados do partido de extrema direita portuguesa Chega mostram cartazes contra o presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva (C) quando ele sai durante a sessão de boas-vindas no Parlamento Português em Lisboa, na comemoração do 49º aniversário da Revolução dos Cravos. Foto: Patrícia de Melo Moreira/AFP

Inescapável recorrer ao clichê e à menção a Winston Churchill, na frase a ele atribuída de que “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais que têm sido experimentadas ao longo da história”. Certamente, esse não é o sentimento e a compreensão sobre o tema, na Rússia de Vladmir Putin. E talvez em alguns setores mais tradicionais e arcaicos da esquerda nacional.

Para quem tiver dúvidas a respeito, há uma vasta literatura escrita sobre a Rússia atual e dos problemas em que implica para o mundo. Para não ocupar a paciência do leitor com uma lista interminável, recomendo a leitura de pelo menos quatro obras: “Todos os homens do Kremlin: os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin”, de Mikhail Zygar (Editora Vestígio); “A guerra pela eternidade: o retorno ao Tradicionalismo e a ascensão da direita populista”, Benjamin Teitelbaun (Editora da Unicamp); “Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas”, de Timothy Snyder (Companhia das Letras); e “O mago do Kremilin”, de Giuliani da Empoli (Editora Vestígio). 

Tudo está lá e faz compreender a natureza da visão política, suas bases, os riscos e o grande problema que Putin e sua mentalidade significam para a paz mundial.

Sinais à Rússia putiniana não são coerentes nem com Lula, nem com seus eleitores. No Planeta Autocrático, em que habitam figuras como Vladimir Putin, Aleksandr Dúgin, Donald Trump, Steve Bannon, Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Narendra Modi, Victor Orbán, Recep Tayyip Erdogan, Daniel Ortega ou Nicolas Maduro não há espaço para reputações progressistas construídas ao longo de décadas. 

Esse é o grande embate da atualidade: os valores democráticos, a forma como pessoas livres pretendem ser governadas, a liberdade de ação e pensamento, os valores que se tem e o mundo que se quer. Como se tratasse de um fino cristal, é necessário muito cuidado com trincas irremediáveis. Afinal, boas reputações podem, sim, ser perder como lágrimas na chuva.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.

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