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Crônica

#POLÍTICA

Crônica – O carnaval da folia e o carnaval da esperança que quase morreu

Da periferia à universidade, vivi da esperança de um país melhor à preocupação com um futuro que não chega. Em um Brasil em eterno recomeço, não há tempo perdido que se recupere

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA21 de fev. de 2313 min de leitura
Homem fantasiado na dispersão dos desfiles das campeãs do carnaval carioca, na Avenida Sapucaí, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2012: Brasil em eterno recomeço. Foto: Daniel Marenco/Headline
Carlos Melo, para Headline Ideias21 de fev. de 2313 min de leitura

Bolsonaro, Lula, Haddad e o absurdo dos conflitos comezinhos dão um tempo. É carnaval. Num mundo furta-cor, logo será cinzas novamente. Todavia, acredita-se que há motivos para folia. Que, desta vez, tudo será diferente. O pior já passou. Pode ser.

Mas é bom não esquecer que os últimos tempos frustraram mais 60 anos de esperanças de um modo que nem o golpe militar de 1964 de fato conseguiu. Nesta última quadra histórica, a realidade mostrou que não, o país não está condenado à felicidade. Nada será, necessariamente, o que poderia ser, somente pelo fato de que pode ser.

A lei que diz que “se algo tem a menor possibilidade de ser, será” até pode ser a síntese da psicologia do país. Mas é uma falácia que a história tantas vezes desmentiu. Não há tempo perdido que se recupere. O tempo não para. O Brasil virou uma espécie de Viúva Porcina.

Hoje, a felicidade dança frevo. As diferenças entre o atual governo e o anterior são, afinal, óbvias. Ainda mais quando se imagina o que seria um Bolsonaro reeleito e energizado. As possibilidades aterrorizam como um filme de ficção verossímil, capaz de se realizar. No carnaval da euforia, sem Bolsonaro, o receio de que tudo desande novamente deveria ser a comissão de frente.

O medo maior é de que nosso mais íntimo carnaval volte a se perder. Não o efêmero reino de Momo, dos blocos da folia, dos bailes e desfiles de passarela, da euforia gaiata um tanto forçada. Esse não parou – esteve e ainda está pelas ruas. É um carnaval que comemora um horizonte permanente que, mesmo nos piores momentos, trazia a alegria da esperança. Algo que se vislumbrava com a alma, o cheiro da fé que havia na atmosfera do país que já foi jovem.

Uma espécie de carnaval utópico pelo qual se esperava. O “tô me guardando pra quando o carnaval chegar”. A certeza de que esse carnaval íntimo (e social) de fato chegaria. Inexoravelmente, chegaria.

Mas, admita-se, nos últimos anos esse sentimento foi substituído aos poucos por um enorme desconcerto. O fim do futuro. A distopia de viver num eterno presente de decepção e desesperança. “Não sei, não sei. Se algo mais expresso, possivelmente, minto. Um desconcerto, confesso, é tudo o que sinto”.

O enredo da infância

Na bruma dos feriados do chuvoso carnaval de 2023, a memória passeia pelo enredo da infância pobre dos anos 1970. O desconcerto chama à necessidade de um balanço do tempo. O que aconteceu? Como as coisas se desenvolveram? Onde também aqui tudo se perdeu?

Não havia internet. A ditadura escapava ao cotidiano da sociedade despolitizada da periferia. Sempre ligado, o rádio murmurava a melhor música do mundo e o país do futebol.  Após os galos, apresentadores populares – Barros de Alencar, Silvio Santos, Zé Bétio – consumiam as manhãs. No fantástico de Gil Gomes a narrativa de um país que, acelerado, transitava do rural para o urbano.

Longe do centro da cidade, os bairros de São Paulo eram uma miscelânea de caipiras do interior, migrantes do Nordeste, imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, judeus, árabes. Eram, ao mesmo tempo, tratados com naturalidade e indiferença. As ruas de terra, sem esgoto e água tratada. Chovia, fazia lama; os sapatos eram sujos de barro. A adaptação era lei. E, do amálgama de gentes e circunstâncias, nascia a criatividade.

Quem lembra de si criança compreende tudo e sente, sem perceber. De consciência passada a limpo, é verdade, só saberá depois.

O fato é que mesmo o clima pesado do regime militar era carnavalizado em desfiles de 7 de setembro sem empolgação e sentido. Uma espécie de Festa Junina, sem casamento e sem padre, sem quentão. Umas frases desconexas: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Didi, dos Trapalhões, cantando “esse é um país que vai pra frente” e pulando para trás. A burrice da censura não dava conta.

O encomendado patriotismo se manifestava de modo apenas mecânico. Para quem havia nascido depois do golpe, toda encenação do regime parecia normal. Uma impostura trivial: no pátio da escola, às sextas-feiras, hasteava-se a bandeira, cantava-se o hino nacional. Ao final, “Seo” Orlando, o diretor careca dono de um Renault Gordini, ordenava: “Direita, volver... Seguindo devagar, esperando sempre a professora chegar...”

Mas, o Brasil era maior que tudo aquilo. Tudo parecia distante, por exemplo, da atmosfera fascista que Fellini narrava em Amarcord. Poucos, quase ninguém, sonhavam em ser soldados. O que fascinava era mesmo o futebol.

TV branco e preto. No reclame Frigor Eder, um boi perguntava ao porquinho o que ele seria quando crescesse. “Salsicha, ué!”, respondia a animação. De fato, o determinismo social era um fantasma; cumpria escapar da cilada fatalista da pobreza e da miséria. Na periferia dos anos 1970, o desafio era ser algo mais que o próprio pai. Tudo, menos “salsicha”.

Fácil sonhar

Parecia mais fácil sonhar. Momento de mudanças aceleradas, alguma mobilidade era possível. A escola pública era para poucos. Ainda elite, professores eram tratados com algum respeito pelo Estado, pelos alunos. Tinham expressão na comunidade. Moravam na “parte boa” dos bairros. Ensinar era um capital intangível e inefável, uma missão que embutia algum tipo de esperança.

No Colégio do Padres, que ainda não cobrava mensalidade, e, depois, na escola estadual, o futuro fluía. Os professores não podiam e nem diziam tudo. Mas, a criança que já sentia a vida dura, sabia que o momento não era bom. E intuía: isso tudo passaria. A intuição é algo que se desenvolve cedo, como um incômodo. Uma hepatite adquirida.

Na casa não havia jornais. Só mais tarde, apareceria o velho “NP” (Notícias Populares), “jornal do crime”, espécie de Diário Oficial da periferia. Tampouco, havia livros, a não ser uma Bíblia esquecida nalgum lugar. Servia para jurar não fumar. E não cumprir. Pedindo para ser lido, um único volume, “O Cortiço”, surgia em todo canto. Coincidência ou não, a casa era uma espécie de cortiço, “com cadeiras na calçada”. Sem nada escrito na fachada, mesmo assim, era um lar.

O cotidiano, o futebol, a vacina, a vida

Novamente, a rádio. Ângela Maria: “tem certos dias em que eu penso em minha gente”. De algum modo, todo peito se apertava, como a tristeza (não a alegria) “que não tem onde encostar”. Um sujeito chamado Vinícius de Moraes e, novamente, o Chico. “Deus é um cara gozador, adora brincadeira...”. O Roberto: "Detalhes tão pequenos...".

A Seleção não foi campeã. Pelé não jogou e Rivelino não foi suficiente. Cadê o Tostão? Um tal Cruyff rasgou o gramado. Mas foi um alemão, apelidado Kaiser, que levantou a taça. No jejum, o Corinthians crescia no orgulho dos humilhados. “Deus dará, Deus dará...”. “Eu devia estar contente...”.

Meninos e meninas de muleta, aparelhos e botas especiais, marca da paralisia infantil. Houve o surto de meningite que o governo, sem sucesso, tentou esconder. O revólver da vacina deixava sua assinatura redonda nos braços. Aos poucos, o Zé Gotinha tornou-se um íntimo do Brasil. A vacina era trivial, óbvia e básica. Ponto pacífico, não havia controvérsia a respeito: era um direito, mais que dever. Tempos depois, o país capotaria numa teimosia e numa burrice insanas a respeito. “A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu”?

Contudo, com tudo, viver parecia tarefa simples.  Para fugir do destino “salsicha”, estudar e trabalhar. Trabalhar e estudar. O crime ainda não era alternativa viável e fácil. Depois, casar-se, ter filhos. Quem sabe, um carro. Tudo dando muito-muito certo, uma casa do BNH. Os relógios eram de corda. Todo dia fazer tudo sempre igual. Calar-se com a boca de feijão. Viver o que fosse possível.

Na refazenda, tudo valia a pena

Nada disso era exatamente ruim. Sem a alma pequena, até a exiguidade de tudo era o bastante para ensinar. Toda periferia tem seu pequeno núcleo de “ricos, só que não”, a maioria era mesmo de “pobres, só que sim”. E, assim, as identidades se formavam num torvelinho de relações e história. Quer saber quem é o adulto, pergunte aos livros qual mundo que lhe construiu até os vinte anos.

O suingue dos pretos, Black Power, forçava mais um pouco a sociedade racista. “A gente corre, a gente morre na BR 3 (...) você teria o mesmo amor se Jesus fosse um homem de cor?”. Uma estética ousada, aberrante, agressiva. Calças boca de sino, salto carapeta. Os anos 1970 ensinaram a sociedade a dançar.

Materialmente pobre, o mundo que formava o homem de hoje era um ricaço imaterial. Se a atmosfera era sufocante para a juventude politizada da classe média, na periferia pedaços de papel celofane cobriam lâmpadas e faziam os mais inesquecíveis bailes: “For just a skyline pigeon dreaming of the open, waiting for the day. He can spread his wings nd fly away again”. A proximidade de corpos, os beijos, as disputas.

Não se tratava de alienação, juízo de valor que se fazia. A sociedade de massas explodia era na periferia, os bairros eram as “bolhas” de então. Não apenas os ônibus lotados transbordavam, também a influência da televisão. Novelas, Gabriela, bem-Amado, Dancin Days. A ditadura, queira ou não, chegava apenas como ruído.

Nos anos 1970 os melhores discos foram lançados. A música tangível dos LPs: encarte, fotos, letras, autores, instrumentos e arranjos. Os sons tinham nomes e donos. Não apenas os livros educavam. Na verdade, nos 70, a cultura e a politização brasileiras se constituíam pela música e pelas novelas. Na refazenda, o Brasil descia a ladeira e ocupava seu espaço “popular”.

Soube-se somente depois que até a música ruim era boa: Evaldos Bragas e Odaires Josés, o patético humano essencial, genuíno e original. “Sorria, meu bem. Sorria”. O sertanejo universitário ensinou que tudo pode piorar.

Criança brinca no bloco "Samba de Santa Clara", na Barra, no Rio de Janeiro, em 2012. Foto: Daniel Marenco/HDLN

A política surge na TV

Na ladeira da memória, a política aparece: Ulysses foi para TV. O MDB ergueu a cabeça. Pragmático, denunciou a carestia. A ditadura começou a cair na inflação da periferia. A Igreja católica agia. Paulo VI, as comunidades eclesiais. A partir de Karol Wojtyla tudo pôs-se a se perder. Pentecostais puderam sofismar.

Um jornalista foi “suicidado”, enforcou-se pelo cinto, com as pernas recolhidas. O arcebispo, o rabino, o pastor, operários em construção, disseram “não”. Na periferia, a ditadura perdia o comando: "Esquadrão da Morte”, a Rota na Rua. Também os pobres começaram a pagar a conta do desastre de 1964.

Anos passavam e a ditadura se autoexplicava como a ditadura que realmente era. O General Geisel, o Pacote de Abril. Congresso fechado, senadores biônicos. Palavras como “abertura” e “anistia” passavam a ser compreendidas. Novamente, os estudantes foram às ruas.

A Copa da Argentina, a guerra das Malvinas. O terror e o mal-estar de lá conversando com seus primos de cá. Professores, aqueles, foram à greve; fizeram um movimento. Metalúrgicos também romperam o medo. Bombas nas bancas de jornais, no carro dos militares, explodiram no colo do general de Figueiredo. O presidente rosnava na TV.

Os exilados voltaram, a política voltou a pulsar mais livre: “uma hora isso tudo vai acabar”. Na Espanha, a decepção com o time do Telê. Novos governadores fora, agora, eleitos. “Sonho escrevo em letras grandes, de novo, pelos muros do país... O tempo andou mexendo com agente, sim”. A eleição direta pode ser “uma arma quente”.

Todos na rua de “camisa amarela”, 1984 parecia reconectar o Brasil com 1958, quando o projeto-sonho de país explodiu na Bossa Nova, no campeonato mundial de futebol, no cinema novo, em Marta Rocha, em Maria Esther Bueno, na construção de Brasília, em Eder Jofre, nos CPCs da UNE, nos festivais. A geração do menino dos anos 1970 fazia conexão direta com seus professores. Sem ironia, “esta terra ainda vai cumprir seu ideal”.

A quaresma de quatro anos

Nossa espécie de destino manifesto caboclo parecia se realizar: o período mais longo da democracia brasileira: 1985-2018. Errando e acertando, bem ou mal o país avançava. Disputas, claro que havia. Posto que é política. Escaramuças entre partidos. Esporte é cultura, como se diz. Nos conflitos PSDB x PT, uma síntese de 16 anos de outro, na simbiose de FHC com Lula.

O país se dava ao luxo da disputa política civilizada. Um arco político moderado, da centro direita para a centro esquerda. Lula versus José Serra; Lula versus Geraldo Alckmin. Dilma versus Serra. A história parecia mesmo ter acabado num presidencialismo de coalizão tão racional que parte da ciência política naturalizou o fisiologismo. Toma lá, dá cá, no Congresso, o Executivo se impunha.

Olhando para os números de cada votação, o modelo parecia um sucesso. O diabo era o que sequer podia ser votado; o problema era o custo de tudo. Ao longo do tempo, “a participação dos partidos no poder” entrou em colapso. Sem alternância de poder, o loteamento ficou superpovoado. Não há toma lá quando nada mais há para dar.

Sem saber que também por lá tudo estaria por um fio, houve os que mimetizaram a política norte-americana: no Brasil, apenas dois partidos (PT x PSDB), como Democratas x Republicanos. Que democracia madura, que povo mais avançado... Jactavam-se: Ulalá, as instituições funcionam! Novamente, só que não.

Desde 2008, a crise ficava evidente. Atropelada pela transformação tecnológica e pelo estouro das bolhas de riquezas irreais, a democracia como que parou de fazer seu delivery econômico e social. A partir de 2013, o desconcerto ficou evidente. A pior eleição da história democrática do Brasil, em 2014, acelerou a hecatombe. A marcha brasileira para a insensatez corria desatada.

De repente, “acabou nosso carnaval”. Ninguém mais ouvia cantar canções, nem “passa mais brincando feliz”. Se Guimarães Rosa vivo fosse, assistiria bestificado o diabo solto na rua, no meio do redemoinho. De verdade. Riobaldo talvez quedasse sem palavras. A quaresma durou mais de 4 anos. Do carnaval utópico, “saudades e cinzas foi o que restou”.

“Mais que nunca é preciso cantar”

As urnas de 2022 parecem dar mais uma chance a meninos e meninas dos anos 1970. Não é possível voltar no tempo, mas será necessário recomeçar. Reerguer instituições não é nada sem reabilitar o carnaval da alma. A crença de que é possível sonhar. E que “sonhos não envelhecem”. A democracia política e social está em algum lugar da fantasia carnavalesca mais íntima.  É preciso procurá-la.

Um carnaval do inconsciente coletivo não pode ser só desengano. Como o samba não pode morrer, ele também, o carnaval utópico, não pode acabar. O país precisa voltar a crer que é viável, que viver é possível. Que garotos e garotas das periferias podem sonhar. “Mais que nunca é preciso cantar”.

No carnaval de 2023, a escola de samba Brasil volta a fazer evoluções. Os mais importantes, agora, são os diretores de harmonia. Atenção para a marcação. Fantasias e adereços ficam para depois. O orçamento foi curto, a desconfiança dos jurados é grande. O enredo precisa ser reconstruído.

Por um triz, a ditadura não foi para a avenida. Os destroços estão na praça. “No entanto, é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar. É preciso cantar e alegrar a cidade”. Ao novo carnavalesco toda sorte. É preciso que saiba que ela não basta.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

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