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O escorregão de Haddad e Operação Padrão de Lira

"Verdade que mentira Haddad não disse. A 'Câmara dos Deputados está com um poder muito grande'. Poderia ter usado 'um poder descomunal'. A ponto de 'humilhar o Senado e o Executivo'. É fato"

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA19 de ago. de 237 min de leitura
O presidente da Camara dos Deputados, Arthur Lira e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad durante coletiva para explicar os trâmites do arcabouço fiscal, em 18 de abril. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Carlos Melo, para Headline Ideias19 de ago. de 237 min de leitura

É certo que ministros da Fazenda precisam se preservar: são taças de cristal, seu estremecimento desperta alvoroço no mercado financeiro. Quando se colocam na linha de frente da política, que combinem com o presidente da República e seus auxiliares. As declarações de Fernando Haddad assumiram o risco. Serviram de pretexto para que Arthur Lira e seus aliados comemorassem uma rebelião forjada. 

Verdade que mentira Haddad não disse. A “Câmara dos Deputados está com um poder muito grande”. Poderia ter usado “um poder descomunal”. A ponto de “humilhar o Senado e o Executivo”. É fato. Em se tratando da harmonia entre Poderes, a força que a Câmara que adquiriu nos últimos anos sacode a corda bamba e compromete o equilíbrio. O sistema de “freios e contrapesos" está com “discos e pastilhas” gastos.

Profissionais desse determinado tipo de política, Arthur Lira e seus rapazes são jogadores estratégicos. Sabem a hora de recuar e avançar. Estão sempre atentos aos erros e deslizes dos adversários. Quando isso ocorre, não perdoam. Nesse momento, avançam, não importando as justificativas do ministro. Deu brecha, já era. Perdeu, brother!

“A Gambiarra”

Enxergar nesse poder inaudito a consagração de uma espécie de “parlamentarismo” é dissimulação ou ignorância. Atualmente, o Legislativo adquiriu o poder de parte do orçamento e nenhum encargo do Executivo. Bônus sem nenhum ônus das decisões que toma. Na prática, a Câmara decide e o governo que se lasque. Se o STF intervier, “aprovam uma PEC”, zeram o jogo. Seus interesses são quase sempre vinculados à liberação de recursos públicos e preenchimentos de cargos nos ministérios.

Um parêntese: preocupa-me a paciência do leitor. Quantas vezes leu a respeito de assunto tão “velho”? Os jornais de hoje repetem os de ontem. E daí para trás. Constrange voltar ao tema. Mas, no Brasil, esse jogo é um clássico. Sempiterno. Está no centro das decisões de quase todas as questões relevantes. Não se faz revisitá-lo por gosto, mas por imposição das circunstâncias.

Recentemente, na tentativa de compreender o funcionamento das coalizões brasileiras, Willian Waack, no seu Painel WW (CNN), buscou “A Geringonça” portuguesa como comparação. Entrevistado do programa, argumentei que a coalizão de António Costa tem funcionado satisfatoriamente. O que há no Brasil, não. “E bem poderia ser batizado de ‘A Gambiarra’”: uma colagem malfeita, sem planejamento ou rigor. Baseada em interesses diversos e dispersos. Um monstrengo voraz.

Invulnerável outra vez

Aplacados os temores e anuladas as vulnerabilidades com investigações da Polícia Federal que rodeavam seu nome – que Gilmar Mendes decidiu invalidar –, Arthur Lira reassumiu a soberba blasé de costume. É mestre do “três vezes ‘dá cá’, uma vez ‘toma lá”. Implacável no manejo dos instrumentos que possui, não transige na defesa de interesses que, afinal, lhe dão sustentação. É daí que emana seu poder.

Votação de interesse do Executivo e do país, só mediante ao pagamento do combinado. Hoje, a moeda de troca se resume à reforma ministerial, definida nos termos que deseja. Lula que se coce e dê seu jeito. Não terá alternativa.

Levar novos nomes à Esplanada dos Ministérios, no entanto, não é fácil. Necessário desalojar outros tantos parceiros. Dançam os que não possuem votos no Congresso – pelo menos não o suficiente. Danam-se os aliados de primeira hora, que carregaram os riscos na eleição. Corta-se na carne; que fazer? Capitular, preservando a Saúde e Educação, joias da coroa. Vida dura.

Também do ramo, o presidente da República enrola, tenta ganhar tempo. Viaja o mundo, procrastina. Prefere negociar com presidentes dos partidos do Centrão, individualmente. Ao seduzi-los, contornaria e esvaziaria Arthur Lira. Mas, o presidente da Câmara é tudo, menos bobo: sabe que já não há tanto tempo que o Executivo possa comprar. A ampulheta disparou. 

Menor euforia, mais uísque

Ainda que as pesquisas registrem melhora na popularidade de Lula, o mercado vive de euforia e desânimo alternados. Está um passo adiante. A ansiedade com o Arcabouço Fiscal será sucedida pelo pessimismo com a reforma tributária, se o tempo da política não se ajustar às expectativas. 

Bolsa e dólar oscilam – não necessariamente pelo Brasil –, mas interferem nos preços e no ambiente econômico. O clima é menos positivo do que há 60 dias. O prazo para envio da LDO se esgota. Tudo coloca pressão. Haddad reagiu instintivamente, talvez. Esqueceu que comer porco-espinho requer muito cuidado.

A imprensa noticiou que Lula e Lira, buscando a paz, encontraram-se para uma longa, informal e inconclusiva conversa. Mas, não há garrafas de uísque suficientes no Distrito Federal para aplacar interesses inconciliáveis: a paz que farejam não é a mesma. O conforto de um depende da pedra no sapato do outro. O prego não faz acordo com o martelo.

Não se trata de impasse – pelo menos ainda não. Mas de um jogo mais lento e custoso. Lira quer emparedar Lula – conta com o tempo e os efeitos das pressões externas. Como não é Bolsonaro, Lula ensaia reagir e isolar Lira. 

Por enquanto, ainda tem de onde tirar leite para atender a tantos bezerros. Há ministérios intermediários, autarquias, novos orçamentos secretos. Também indicações para o Supremo e para a PGR, na manutenção de sua boa relação com o STF. Enquanto isso, a PF, talvez, encontre mais criptonita em Alagoas.

Porém, a disputa tem limites. Segue até que os custos da negociação fiquem maiores que os ganhos pretendidos. Ou mais dispendiosos do que se levantar da mesa. Aí, sim, viria o impasse. Não é para já, no entanto.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante o seminário Reforma Tributária: A Hora é Agora, na sede da Confederação Nacional da Indústria (CNI), em Brasília, em 21 de junho. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante o seminário Reforma Tributária: A Hora é Agora, na sede da Confederação Nacional da Indústria (CNI), em Brasília, em 21 de junho. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Me dê motivos”

Antes disso, porém, tropeços tolos animam o presente. Tudo o que Lira e o Centrão – não exatamente os presidentes dos partidos – sonhavam era mesmo com um escorregão de alguém como Haddad. Algo que gerasse um pretexto publicável e fizesse escorrer o viscoso líquido de uma indignação fingida. Os líderes do Centrão assobiavam Tim Maia: “Me dê Motivos”. Inadvertidamente, Fernando Haddad os deu.

E não foi muito. Foi quase nada: bastou esboçar uma pequena crítica – uma tímida e educada crítica: “a Câmara dos Deputados está com um poder muito grande”. Como denúncia, é singela, quase inocente. Pueril, diante da realidade. Mas, não carecia de nada além. Para ser capturado pela cilada das circunstâncias, um muxoxo bastaria.

Reações indignadas advieram: “um ultraje ao Parlamento!” Aparentemente, a encenação fez o carro andar: Lula já admite encaminhar a reforma para os próximos dias. Como símbolo de sua “Pax”, Lira indica liquidar a votação do Arcabouço já na próxima semana. “A demora, é claro, se deu apenas em virtude de divergências na Câmara com o que fora aprovado no Senado”. Tudo normal, na versão oficial. Só que não. 

Postes que correm parados

As declarações de Fernando Haddad não são mais graves nem mais nocivas que a “operação padrão” levada a cabo por Arthur Lira, resultado da letargia e causa da deseconomia que prejudicam o país. Esse tipo de inversão de lógica e gravidade de cada ato poderia estar nos livros de George Orwell.

À sociedade, porém, já quase nada repulsa. Tudo passa ao largo, nas cercanias de uma sonolenta desatenção. O que seria escândalo foi naturalizado. A imprensa amplifica o tropeço de Haddad. E banaliza o jogo de Lira. Para quase todos, a política já faz parte de um mundo velho, tedioso. Repetitivo. Até chacinas e assassinatos de crianças passam como os postes que correm parados nas janelas de um trem. 

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper. 

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