#POLÍTICA
O julgamento de Bolsonaro e a naturalização de sua ausência
Bolsonaro é página virada. Pelo menos até 2026, a depender como Lula se relacione com as igrejas e da generosidade de seu governo. Com incentivos e isenções de impostos, os pastores tendem a conter a ira santa
Carlos Melo, para Headline IdeiasNos tempos de Jair Bolsonaro na presidência da República, tudo o que o analista mais pedia aos deuses era que a política lhe desse apenas uma crise por dia. Uma única crise por dia. Afinal, nos quatro anos do ex-presidente, o caos programado e a vertigem induzida davam a sensação, e de fato produziam, três, quatro, cinco crises diárias. Sem que isso, é claro, significasse qualquer mudança positiva ou avanço em direção à melhoria do ambiente.
Pelo contrário, Jair plantava crises para colher retrocessos. Sua utopia era regressar ao passado. Seu ideal administrativo era destrutivo: pôr abaixo tudo o que as instituições haviam construído nos 40 anos anteriores. Seu projeto político consistia em regredir a tempos obscuros, onde flanavam pelo país militares autoritários e políticos reacionários de todo tipo. Tempos de tortura, literalmente.
Quem se formou na escola-prática da política nacional sabe a dor e a delícia de ser o que é: a agitação do cenário político faz parte, e é mesmo natural por estas bandas. Não vivemos a mesmice sepulcral dos países desenvolvidos econômica, social e politicamente. País repleto de desigualdades e desinteligências, tudo está por ser feito e isso causa conflitos e custa a paz.
Contudo, por esses dias, o país parece voltar ao normal e experimenta novamente o tempo de apenas uma ou duas crises semanais.
Certo que ao menor alarido e altercação contida o nervo ainda pulsa. E faz com que o analista desconfie se não está, ao final, mal-informado a respeito do retorno da roda-viva de conflitos. Com efeito, por aqui, à falta de pelo menos que um escarcéu semanal sente-se uma quase ausência de vida.
Mas, nesta semana, não tem sido assim. Pelo menos por enquanto, a crise é apenas crônica. Não possui a tonicidade de seu costumeiro quadro agudo – paradoxal apenas em termos – dos últimos anos. Isso não é ruim.
Resultado presumido
Por esses dias, portanto, a crise crônica tem expressão no julgamento de Jair Bolsonaro, no Tribunal Superior Eleitoral. É o fato com maior potencial de tensão. Mesmo assim, ele ocorre na expectativa de um resultado presumido e, aparentemente, já assimilado: Bolsonaro deve ficar inelegível por oito anos.
Dúvidas residem apenas no placar: será por unanimidade (7x0) ou sentimentos de gratidão, que ainda gotejem sob alguma toga, farão resultado menos largo: 6x1, por exemplo?
Como observou Pedro Malan, “no Brasil, até o passado é incerto”. Tudo pode mudar e frequentemente muda rapidamente. Mas, o fato é que o ex-presidente abusou da regra “onde menos vale mais”. Tantas fez, que até a condescendente Justiça brasileira demonstra cansaço com o estilo Bolsonaro de ser e fazer política.
A punição ao ex-presidente não se resumirá a ter-se reunido, em espaço oficial, com diplomatas estrangeiros e desancado as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral de seu país. Será pelo conjunto da obra e apenas nos limites do direito eleitoral. Mais adiante, outras Cortes dirão se há mais crimes a punir. E, talvez, mais e maiores emoções possam vir.
No caso específico, tão claro quanto o sol em manhã de primavera, é o entendimento de que Bolsonaro pelejou para desqualificar qualquer eleição que lhe trouxesse riscos de derrota. Chegou mesmo a declarar que não aceitaria outro resultado que não fosse sua vitória. No futebol, desqualificaria a arbitragem, as linhas no campo, as traves, o VAR e a bola.
Foi explícita sua intenção de “melar o jogo”. E isso é crime. Se não no futebol, certamente na política democrática, assentada num pacto de reconhecimento e submissão às regras e aceitação dos resultados. Atentar contra a eleição é o mesmo que atentar contra a democracia. E não há pobre figura de linguagem -- “permanecer entre as quatro linhas da Constituição” — que consiga esconder e realidade de suas intenções, felizmente, malsucedidas.
Reações
Com o veredito do STF e a inelegibilidade definida, o calor nas redes sociais tende a crescer: o “som e fúria” dos bits e bites serão agitados. Mas, já estão no preço. Nesse momento, as bolhas crescem: mas terá consequências para além disso? É bem fácil -- e, ainda, de graça -- que o valente se manifeste indignado e feroz, na segurança do lar, sentado no sofá da sala (comerá pipocas?).
Embora não se possa descartá-las, mais raras serão as manifestações de rua: as procissões de alucinados, vestidos de soldados e camisas da seleção brasileira de certo haverá. Em algum grau, elas ocorrerão, mas é pouco plausível que apresentem o nível de organização e mobilização dos acampamentos diante dos quartéis e do 08 de janeiro. Se com poder não deram certo, por que dariam agora?
Nem entre os mais renitentes apoiadores de Bolsonaro, os evangélicos, tem havido mobilização – sequer oração – em favor do ex-presidente. Há, na verdade, um sutil distanciamento. Neste momento, esses “filhos de Deus” se afastam e se voltam aos temas de costumes, contra o movimento LGBTQIA+ e outros setores minorizados desprotegidos.
Com outro inquilino no Palácio do Planalto, Bolsonaro é página virada. Pelo menos até 2026, a depender como Lula se relacione com as igrejas. A depender da generosidade de seu governo, com incentivos e isenções de impostos, os pastores tendem a conter a ira santa.
E também Bolsonaro submergiu e pouco tem se manifestado. Sabe que perder direitos políticos pode não ser o que de pior lhe espera. Mesmo com todo apoio que ainda tem espalhado pelo país, fazer política sem máquina e mordomias do cargo é bem mais árido e menos eficaz do que pode experimentar nos últimos anos.
À falta de outros argumentos, buscará o abrigo do discurso de “vítima”. Quando não se é ou não se está na condição de protagonista, melhor ser o antagonista pretensamente perseguido.
Pesquisa: para onde vai a direita
Algoz para grande parte do eleitorado e vítima para parcela igualmente considerável, ao longo desta década Jair Bolsonaro não mais estará nas urnas: se voltar, somente lá por 2032. Como não é nenhum “Perón”, é pouco provável que o mito resista ao tempo.
Nos curto e médio prazos, seu espírito político e força eleitoral devem ter espaço no debate político e lugar nas disputas eleitorais. Em recente pesquisa realizada pelos Institutos Ideia e Locomotiva, para a Zeitgeist Public Affairs, 54% dos eleitores que afirmam ter votado em Jair Bolsonaro indicam estarem dispostos a votar noutro nome conservador, em 2026, independente do apoio do ex-presidente. Somente votariam em nome necessariamente com seu apoio, 28%; 14% votariam somente em Bolsonaro.
Indicaram também os nomes que melhor o representam: sua esposa, Michelle, e seu filho Eduardo. Contudo, quando perguntados quais seriam os nomes com maior capacidade para governar, no campo conservador e bolsonarista, os entrevistados apontaram os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e do Paraná, Ratinho Júnior, como seus favoritos. Sobretudo, Tarcísio.
Retira-se daí uma inferência: é, naturalmente, a família que melhor o representa. Mas, não é entendida como mais capacitada para governar. O primeiro atributo é, normalmente, mais valorizado num primeiro turno eleitoral: nomes mais conhecidos decolam mais rapidamente, mobilizam mais e, por decorrência, ajudam a eleger maior bancada.
O outro atributo – maior capacidade para governar – é fator de definição no segundo turno, quando os postos proporcionais já estão preenchidos.
No primeiro turno, quando são igualmente eleitos deputados (federais e estaduais) e senadores, as pressões partidárias pesam muito mais. Não por acaso, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, tem indicado preferir o nome de Michele Bolsonaro como candidata a preencher o vazio bolsonarista. Estimulando seu maior envolvimento com a política partidária, pode fazê-la carregar a turba eleitoral consigo.
Para o presidente do partido, os nomes do jogo são: tamanho de bancada, fundo partidário e fundo eleitoral. “Grana”, recursos tangíveis para a disputa política e manutenção do poder. Conquistar a presidência da República teria menor importância, uma preocupação de segunda ordem para quem vive o cotidiano dos reais interesses da política institucional.
A partir desse ponto de vista e nessa preferência pragmática, o cenário fica mais complicado para alguém como o governador de São Paulo: é considerado “melhor”, mas “representa menos”. Isso explica sua dificuldade política e prática de se distanciar do ex-presidente.
Sem liberalismo
A mesma pesquisa indica outro dado que chama à reflexão: quando comparados com os eleitores do presidente Lula, os eleitores de Jair Bolsonaro divergem dos primeiros, fundamentalmente, em princípios vinculados à “pauta de costumes”. São conservadores e, naturalmente, avessos à mudança dos tempos.
Contudo, quando cotejadas aspectos vinculados ao papel do Estado e sua interferência nas relações de mercado, eleitores de Bolsonaro e Lula pouco se diferenciam. No geral, tendem igualmente ao intervencionismo. Logo, a associação entre bolsonarismo e liberalismo econômico é frágil. Desfeita diante do menor atrito. E, no mais das vezes, oportunista.

Em 2018, Bolsonaro se aproveitou do liberalismo tanto quanto o liberalismo pretendeu pegar carona em sua candidatura. Paulo Guedes é a maior expressão desse movimento e de sua frustração. De paladino do liberalismo nacional, o ex-ministro tornou-se espectador, quando não agente, de intervenções estatais nas empresas de economia mista e do maior uso e abuso eleitoral de recursos públicos.
Infelizmente para uns, felizmente para outros, não há no Brasil direita ou centro liberal com relevância política. Terceira Via somente existirá – como “segunda via” – no enfraquecimento de candidaturas de direita ou esquerda, ainda assim, obrigada pelo eleitor a fazer inflexões e concessões a um ou outro lado, dependendo do cenário eleitoral.
A agenda liberal não tem aderência da população e das forças políticas. E nenhum candidato tende a morrer abraçado a ela. Sem novidade: apenas dados recolhidos como evidências a comprovar o que a intuição já indicava.
Por enquanto é isso: o temor quanto às reações da punição eleitoral a Jair Bolsonaro é justificado pela história, mas o presente não o recomenda. Mesmo campo político conservador – e, nele, o bolsonarismo -- já antecipa o convívio com a ausência de vivo-morto que Bolsonaro deve passar a expressar longo do tempo. É uma crise não-crise. Bolsonaro tende a uma aterrisagem lenta e calma.
Nesta semana, é isso. Na expectativa de novas crises a qualquer momento, até a semana que vem.
Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.