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O mal-estar e o acaso da liderança progressista

A questão central da minha perturbação: a notória ausência de líderes políticos progressistas, no interregno nestes anos 2020. Seja a liderança que encabeça processos de condução social, seja a que compõem o grupo transformacional circunstancial

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA2 de mai. de 2312 min de leitura
Lugar reservado para o então presidente jair Bolsonaro no jantar de posse do deputado Alceu Moreira no cargo de presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária e de sua diretoria, no clube naval, em Brasília, em 19 de fevereiro de 2019. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Carlos Melo, para Headline Ideias2 de mai. de 2312 min de leitura

“Desde la puerta de La Crónica Santiago mira la avenida Tacna, sin amor: automóviles, edificios desiguales y descoloridos, esqueletos de avisos luminosos flotando en la neblina, el mediodía gris. ¿En qué momento se había jodido el Perú?” (Mario Vargas Llosa. Conversación en La Catedral)

“Em que momento tudo se perdeu?”, perguntou um estudante numa das aulas da semana. Difícil dizer. Tony Judt, o grande historiador britânico, precocemente morto, indicava que entre 1945 e 1975, o mundo viveu algo como o esplendor da democracia, cuja presença de lideranças progressistas era ampla e sortida – arrisco em acrescentar. Judt se referia ao mundo ocidental, à Europa e aos Estados Unidos, é claro. Mas, também a um vento que soprava por quase todo planeta: a democracia se expandia como valor e desejo.

Foi um período em que liberdades foram ampliadas e direitos civis foram, pelo menos formalmente, reconhecidos. Aumento de renda e sensível melhora no padrão de vida. O sentimento de viver no interior de um todo chamado “Humanidade” que pulsava na política e nas demais artes. Sim, a política era arte que se expressava num tipo específico de liderança. 

No período a que Judt se refere houve a tentativa de expansão de um padrão específico de progresso, o american way of life. Uma promessa de que, mais tempo, menos tempo, todo o planeta prosperaria a caminho de um comercial de margarina. Felicidade standard, prêt-à-porter à qual existencialistas, mais ou menos derrotados, deveriam se ajustar ou dar à vida o “ponto final de um balaço” – como escreveu o poeta Maiakovski, antes do suicídio. (Claro, não haveria de ser depois, como foi o caso de Braz Cubas).

Tudo começou a degringolar

Esse padrão de “Bem-Estar” não se baseava em aumentos de produtividade e repartição de aumentos de riqueza – embora houvesse. Mas, fundamentalmente, em políticas tributárias que não se mostraram sustentáveis, econômica e politicamente. Sim, os ricos reclamaram, mas não foi só isso: recursos para investimentos em inovação também escassearam, diversos choques fizeram com que as economias estagnassem. Veio o tempo ruim.

Os gastos sociais encolheram, assim como o papel e a importância do Estado. Já a mencionei algumas vezes aqui, perdão se me repito, mas data daí aquela frase emblemática da Senhora Thatcher: “esse negócio de sociedade não existe. O que existe são os indivíduos e suas famílias”. Se sociedade não existe, a política tampouco importa. Pior: é uma atividade miserável. Estamos à própria sorte. Todos contra todos.

De fato, hoje, estudiosos de política assemelham-se ao tipo lúgubre, de ombros caídos, olheiras profundas, vestes soturnas: o especialista em “línguas mortas”. A política tornou-se uma espécie de latim, onde quase tudo se origina, mas ninguém o percebe nem quer perceber. Objeto de estudo que se empobrece com personagens decadentes ou caricatos, menos interessantes a cada geração. Isso tudo deixa a gente “mais angustiado que o goleiro na hora do gol”.

Angustiados porque a tal da libertação não veio, não veio a utopia, a festa acabou e tudo acabou. “E agora José? (...) Você marcha, José! José, para onde?”

A crise de liderança política

Talvez, por outro lado, não seja nada disso. E o desconcerto que passa é apenas um fenômeno normal dessas fases de transição em períodos de transformação estrutural. Um lírico apelo subjetivo, típico dos poetas. Muito corriqueiros em momentos em que é impossível enxergar ou antever o futuro. Períodos de acelerada e vertiginosa transformação. Aquilo que, há cem anos, Antonio Gramsci chamou de “interregno” e meu colega e amigo Sérgio Abranches resgatou como possível chave explicativa deste momento. Momentos em que “nada é, tudo flui”, disse Abranches. 

Mas, é inequívoco esse sentimento, assim como evidente a crise política que a ele dá vida. 

Antes de discutir “o momento em que tudo se perdeu”, é fundamental descobrir o que, afinal, se perdeu. Qual elemento da política como a conhecíamos se foi ou se modificou tão profundamente. O que faz falta e que falta faz.

Não me refiro a clichês como “espírito público”, pois, embora não o refute, o ambiente político reproduz a sociedade: indivíduos agem por interesses e recompensas pessoais. E isso não impede que ocorra um “ganha-ganha” – ganha a sociedade, ganha o indivíduo – e não importa se seu ganho seja expresso em valores pecuniários e tangíveis ou na vaidade e na glória política e histórica.

Refiro-me a um tipo de liderança política, a progressista.  E não me limito, obviamente, a políticos de esquerda – até porque nem sempre há aí, exatamente, esse sentido de progresso. Mas, a que almeja o “progresso”, que Norberto Bobbio indicou ser o “gradual crescimento do bem-estar ou da felicidade, a melhora do indivíduo e da humanidade”. Uma concepção iluminista, prática – não romântica, nem corporativista - e crítica da ação do homem. A busca da ampliação de direitos, a admissão da diversidade. Inclusão social de todo tipo. 

Compreender é preciso

Tudo isso impele a perscrutar o que se passa no universo político e na liderança política, sua unidade mais elementar. Discutir a crise de liderança política é imperativo, pois é ali, na prática e na expressão de seus agentes, que se busca, senão respostas conscientes e elaboradas, pelo menos, ações concretas na direção da amenização do mal-estar e da sinalização da construção política do futuro. Que, ainda que não seja um reclame de margarina, apresente-se como algo mais amistoso e generoso do que se vê. 

Há anos, tenho me debruçado sobre esse fenômeno e percebi que “liderança política” é um termo constantemente repetido, um sentimento ou uma perturbação daqueles que a procuram, mas não um conceito definido e facilmente assimilável. Um gênero escasso, atualmente, em falta. Um combustível vital

Não há resposta clara para o que faz ou não alguém ser líder político, de verdade. Nem há clareza objetiva do que é, afinal, a Liderança Política. De modo bastante genérico, poderia ser enquadrada como a capacidade de compreender contextos, persuadir pessoas e conduzir processos políticos. Isso tudo acompanhado da fina percepção dos jogos que ocorrem ao redor dos indivíduos. Discreto charme de sagacidade, argúcia e astúcia. Não necessariamente carisma.

Algo que, à parte de características peculiares, não poderia ser imaginada unicamente na esfera unipessoal. Não há heróis, Chapolin Colorado, salvadores da pátria, mitos e bobagens do gênero. O líder é aquele capaz de vocalizar grupo, acercar-se dele, representá-lo e configurá-lo como seu instrumento de articulação e operação política. 

Ou seja, ter ao pé de si outros indivíduos tão capazes e igualmente portadores de aptidões amplas. Humildes o suficiente para submeterem-se a uma hierarquia informal, circunstancial e colaborativa. Onde, vislumbrando o futuro e antecipando-se a ele, todos ganham.

Foi o que fez Abraham Lincoln ao formar o “time de rivais” que teve por perto nos piores momentos da guerra de secessão norte-americana. Foi o que fez o Roosevelt com a qualificadíssima de políticas públicas, a começar por sua esposa, a extraordinária Eleanor. Foi o que fez Mandela ao dialogar com setores que o puseram na prisão por quase 30 anos. Foi o que fizeram Tancredo e Ulysses ao amainarem a disputa que mantinham entre si. 

Ninguém ensina alguém a ser líder político, embora a liderança possa ser apreendida e aprendida por meio da observação. Desconfio de teorizações estandardizadas e de receitas espertalhonas do tipo “Maquiavel em X lições” – como se o Nicolau fosse realmente capaz de transferir a essência de seu Príncipe, César Bórgia, a qualquer “Médici” de ontem ou de hoje. Como se fosse possível juntar, sem distinguir Bonaparte de Mitterand; Roosevelt de Clinton; Getúlio de Lula. 

Onde nasce a crise?

Mas, desconfio que esteja me perdendo – maldito vício de dizer e escrever sem freios -- ao me afastar da questão central da minha perturbação: a notória ausência de líderes políticos progressistas, no interregno nestes anos 2020. Seja a liderança que encabeça processos de condução social, seja a que compõem o grupo transformacional circunstancial. A liderança –progressista – que sumiu, num mundo ao mesmo tempo à mercê de párias autocratas, demagogos governantes incidentais – novamente, Abranches.

Essa falta, que já dura algum tempo, tem feito com que a sensação ainda que fluida de bem-estar se perca no pó da longa estrada dessas décadas de intensas (e imensas) transformações tecnológicas, econômicas, sociais e políticas. Quando isso principiou, onde estão suas causas: terá sido no advento revolucionário – ou contrarrevolucionário -- das redes sociais? 

Como indicou Umberto Eco, é fato que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis” que, antes delas, não encontravam espaço para manifestar platitudes.  Sim, no conforto de um sofá, com smartphone nas mãos, o sujeito alheio à história e submetido a um fluxo limitado e viciado de informações interage com seus iguais e perverte um sistema antes tomado por uma elite intelectualmente qualificada. 

Sim, o raciocínio é demarcada e inevitavelmente elitista. Mas, à parte dessa tragédia de adaptação a um novo instrumento de comunicação mais ampla e inclusiva, suspeito que não sejam as redes a principal razão do fenômeno, posto ser a decadência da liderança política anterior à sua invenção. Mais: talvez o sucesso das redes seja mesmo um dos desdobramentos do ocaso da política e da liderança.

Já em meados dos anos 1970, Richard Sennet alertava para “o declínio do homem público”, em razão da emergência de uma cultura do narcísica, responsável pela morte do espaço público. A sociedade de massas propulsora de um individualismo hedonista desligado de relações comunitárias. Muitos anos depois, Mark Lilla indicava a fragmentação política do campo progressista norte-americano como resultado da multiplicação de lutas identitárias, justíssimas sim, porém parciais.  Paradoxalmente, frutos e dispersores do avanço do processo de conquista de direitos civis. 

No Brasil, além disso tudo, a carbonização de potenciais lideranças parece se dar em razão de incontáveis escândalos e casos de corrupção política: do impeachment de Fernando Collor à revelação do mensalão – o impeachment de Dilma Rousseff e a Lava Jato ocorreram já no esplendor da influência das redes sociais. Gradativamente, cada nova geração parece expressar menor participação política progressista e oferecer formas inferiores de contribuição quando comparadas à geração anterior. Assusta verificar a quantidade de jovens reacionários.

Como se vê, embora tenham muitos pedidos anotados em suas cartelas de consumo, as redes sociais não podem pagar sozinhas por essa conta. 

Restaria demonizar Margareth Thatcher, em virtude de sua frase a respeito da inexistência “desse negócio de sociedade”. Foi o que de chofre resolvi, em suspeita pressa, responder a um de meus alunos – ainda bem que lhes previno a desconfiar da assertividade ansiosa de minhas respostas cheias de dúvidas. 

Mas, o fato é que esse tipo de mal-estar também precede à Thatcher. O individualismo hedonista, típico da sociedade do hiperconsumo capitalista -- uma assustadora competição lúdica por riqueza e consumo -- já fora percebido por Max Weber, no início do século XX.

Culpar o capitalismo – como se outro sistema, real, lhe fosse moralmente superior – é sempre uma boa saída. O capitalismo é mesmo um cipoal de problemas e misérias humanas. Mas, talvez, seja apenas a porta aberta para um beco. A presença da grande liderança política do século passado se deu, justamente, no seu ventre: Estados Unidos e Inglaterra.

A decadência da liderança política parece, então, estar em todo lugar -- regimes autocráticos, por usarem a força, não podem ser apresentados como contraexemplos, pois, antes, eles aprofundam a fossa em que a política atual parece ter caído.  E, além disso, sua admissão como exemplos de boa liderança seria admitir derrota total da Grande Política e da Humanidade.

¿En qué momento se había jodido el mundo?

Difícil responder quando e onde tudo se perdeu, esta é a constatação mais constrangedora. Uma ciência qualquer – ou qualquer suposta sabedoria científica -- talvez localizasse a origem do fenômeno em um ponto específico, lá no centro de uma constelação de contradições. Mas, há que se admitir que a política e a liderança tenham se perdido em tudo e em nada; em todo lugar e em lugar nenhum. 

BRASIL - Brasilia, DF - 15/07/2019 - Deputado Boca Aberta (PROS-PR) discursa para plenario da Camara dos Deputados vazio nesta segunda-feira, em Brasilia. Foto: Daniel Marenco
Em 15 de julho de 2019, o então Deputado Federal, o paranaense Boca Aberta (PROS-PR) discursou para um plenário da Camara dos Deputados praticamente vazio, em Brasilia. Foto: Daniel Marenco/HDLN

Na sociedade de massas, no fim de uma inocência qualquer, quando e onde todos já supõem, ilusoriamente, serem senhores da própria vontade e, por isso, aptos a dispensarem a política. No fim do sonho de líderes remanescentes de um espírito que sobreviveu às grandes guerras e à guerra-fria, mas que sucumbiu à sociedade moderna e global. Na “lei de Muricy, onde cada um cuida de si”.  

Na epígrafe deste texto, está o parágrafo que abre o monumental de “Conversa na Catedral”, de Mário Vargas Llosa, escrito no final dos anos 1960. Lá, o Nobel de literatura de 2010, pressentia a derrota individual que, de algum modo, era a derrota de todos. E se perguntava ¿En qué momento se había jodido el Perú? 

Indaga-se por que apenas o Peru, Mário, se quase todo mundo e tu mesmo também se perderam? Por que seria a partir de algum lugar ou de alguém? O Peru dos diálogos de Zavalita e Ambrósio, personagens do livro, é mera expressão figurativa do universo. Da humanidade claudicante, cuja cultura política e a ação de líderes vinculados à ideia de progresso estão soterradas.

Superar o mal-estar e a perplexidade do futuro ainda mais incerto que em tempos passados é o desafio de Hércules. Sociedades existem, sim. A humanidade também. Indivíduos fazem a história, sofrem seus reflexos, mesmo sem saber a história que fazem. Cada vez mais caóticas e agressivas, menos amigáveis a indivíduos e às suas famílias, as sociedades gritam por algo que as resgate do beco ou da selva. Somente a política e a liderança progressista serão capazes de fazê-lo. O xis do problema é reencontrá-las.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.

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