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#POLÍTICA

O mundo, a crise e o seletor de canais de TV

Líderes políticos caíram em desuso, assemelhando-se a peças de museu. Essa é a maior expressão da crise do tempo presente: a crise de liderança política. No mundo e no Brasil

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA 18 de abr. de 2310 min de leitura
para uma máquina que cunha uma moeda comemorativa para coincidir com o 25º aniversário da libertação das Ilhas Malvinas da ocupação argentina na Pobjoy Mint em Kingswood, ao sul de Londres, em 31 de maio de 2007. Thatcher, primeira-ministra da Grã-Bretanha na época do conflito das Malvinas, e o governador Sir Rex Hunt, assistiram a uma série de moedas cunhadas em nome do governo das Ilhas Malvinas. Foto: Adrian Denis/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias18 de abr. de 2310 min de leitura

História é tempo mais espaço. Ninguém escolhe o momento histórico em que vive. Ainda que pequena parcela da sociedade, com recursos ou ousadia, possa escolher onde vive, não define o tempo e o espírito do lugar, seu zeitgeist. É o caso desta quadra histórica de vertiginosas mudanças, de transição para algum ponto indefinido do futuro. Não se escolhe. Vive-se condenado a seus impasses, com receios do futuro e ganas do passado.

A geração de homens e mulheres hoje com 50 anos ou mais viveu dois mundos. É analógica, mas se tornou digital por imposição das circunstâncias. É gente que assistiu TV trocando canais por um seletor mecânico. Um treco redondo, assemelhado a uma maçaneta, que girava e fazia tec-tec-tec. Cada “tec” era uma emissora. Diz-se que quem trocou canal de TV no seletor está mais próximo da eternidade do que do amanhã. 

Pessoas que usaram telefone de disco e fio; que escreveram em “máquina de escrever” – usaram Radex para consertar erros de digitação (não havia o “Del” no teclado); fascinaram-se com o telex. Fotografaram na Rolleflex, – “revelando enorme ingratidão”. Pilotaram Fuscas e Lambretas. Tinham medo de avião. Assistiram ao surgimento da TV em cores e do controle remoto; do CD, do vídeo cassete, do celular “tijolão”, do DVD, do Blue-Ray, e a revolução do Smartphone. 

Presenciam a passagem entre os mundos que as novas gerações não dão conta de imaginar. A autonomização das máquinas, a artificialização do conhecimento. Padrões de consumo inéditos, ciência sem limites e ignorância sem tamanho. Nova sociabilidade, novos modos de relacionamento. A mudança nos sentimentos e nas artes. Alta reprodutividade de tudo. O fim da liderança política?

Do pós-guerra ao Chat GPT

São pessoas nascidas na sociedade do pós-guerra, a qual também pariu os Beatles, Fellini, Guimarães Rosa e Tom Jobim. Que vivem num “hoje” em que quase tudo e ainda muito mais cabem no celular. Sem o streaming, a vida era outra. Tudo era raro e precioso; custoso, difícil de encontrar, como os Beatles, Fellini, Rosa e Jobim.

A Inteligência Artificial promete reproduzir o gênio humano, mas jamais recriará o sublime no olhar da arte e no sentimento do mundo. Riobaldo, novamente, só como pastiche.  Let it be. No Chat GPT, o ar é de farsa. O logro e o embuste, acelerando a vida, facilitando o não pensar. Um “Google Bombadão”, arrogante. Artificial é o nome correto. 

Na política não é diferente. Ela também parece deslocada no tempo. Redes sociais pulsam e dão vazão ao debate. Mas, também ao combate, à lacração, ao cancelamento e às Fake News. Criam o político virtual, artificial. Elegem e o reelegem. O sujeito tem um milhão e meio de votos, o rei do YouTube. Mas, é oco. Vive do vulgar espetacular, do patético ideológico, da polêmica estéril. Encerra-se na bolha. 

Essa chamada “nova política” não cria as condições de reprodução da Grande Política e de sua arte. Não representa classes, culturas, visões de mundo. Expressa apenas um senso comum belicoso; uma raiva incontida no conforto de um sofá. Não dá luz ao tribuno, ao articulador, ao formulador do futuro, ao negociador dos conflitos, ao construtor de consensos. Ao estadista.  Não cria nem ressuscita a Liderança Política. Onde tudo se perdeu?

O liberalismo de almanaque e autocracias

No início dos anos 1980, Margaret Thatcher afirmou que “esse negócio de sociedade não existe; existe apenas os indivíduos e suas famílias”. Muita gente caiu nessa. A sentença marcante teve seus efeitos, ao longo de anos, e resultou num quadro de individualismo deletério. 

Se não há sociedade, a política, mais que desnecessária, é uma fastidiosa perda de tempo. Assim o Estado, um mal a ser removido; as instituições, ruínas a derrubar. Tudo em nome da liberdade, pelas mãos do gênio criativo de um empreendedor que, em tese, haveria em cada indivíduo, só, com interesses inamovíveis. 

Cada um pensando desse modo constrói a Ação Social do hedonismo consumista. Uma nova era é inaugurada. No mundo fechado e solitário de cada ser, a política é desnecessária. Como ela pressupõe o outro, com seus desejos e frustrações; alguém além do algoritmo, que reside em outra bolha como fosse de outro planeta, a política resulta em atividade miserável. O “fim da história”. 

Pois, a superioridade do mercado colocava ponto final em todas as contradições. Oferta e demanda resolveriam todos os conflitos por meio de um modelo econométrico. O mundo unipolar daria as respostas. Bastaria liberdade e a naturalização da desigualdade. A economia canibalizada pela matemática fez-se ciência hegemônica. A Justiça um aparelho privado de promotores, procuradores, juízes e advogados.

A competição econômica definiria vencedores e perdedores – winners and losers lógica e linguagem comuns. A desigualdade de condições, as discrepâncias entre pontos de partida, detalhes menos importantes. A sorte também confundida com o mérito pessoal. O “mérito hereditário”, atributo pessoal (Michael Sandel). A magia de um liberalismo de almanaque, vulgar e arcaico. Leituras apressadas.

Omitiu-se necessidade de arbitragem entre vencedores e vencidos - papel da política, por excelência. O inescapável de políticas públicas capazes de mitigar os efeitos das grandes transformações foi negligenciado. Tudo no Estado deveria ser minimizado. E, de fato, a riqueza do mundo se decuplicou, assim como a desigualdade.

A beleza dos ricos, o esplendor do consumismo irracional e desenfreado; a ascensão social pela posse. O fim do intelectual e do homem público (Sennet). A agressão à natureza, o alargamento do fosso social. Impostos para remédios e livros, isenções para jatinhos e Jet-skis. Ganhos de produtividade apropriados por pequeno grupo, corporativismo na sua versão mais livre. 

Da exploração à irrelevância de vários tipos de trabalho (Castells). Que tal diminuir a desigualdade eliminando fisicamente os miseráveis? Os pobres, quase todos, dispensáveis. “São assim por falta de esforço”, diz o playboy do alto de uma sabedoria familiar, adquirida na interação com seus iguais nas alamedas dos bons clubes sociais. 

O trem descarrilhou

Em algumas décadas – que a geração com 50 anos ou mais acompanhou -, um mal-estar silencioso estava instalado. Sem a política para intermediar a raivas e soluções, os problemas explodiram. As primeiras manifestações foram chamadas de “Primaveras” pois pareciam florescer uma nova democracia. 

Ledo engano: se espalharam pelo mundo numa pauta difusa contra “tudo o que está aí”, sem saber ao certo o que seria. Eram revoltas sem lideranças, agendas ou referências expressavam descontentamento, som e fúria. E que democracia, se resultaram em retrocessos civilizatórios que trouxeram à cena fenômenos como o “Estado Islâmico”, o “Brexit”, Donald Trump e Jair Bolsonaro?

O trem descarrilharia. Como de fato descarrilhou. Governos autocráticos se estabeleceram articulando-se ao liberalismo radical e ultrapassado. Em desespero, esse tipo de liberal deu as mãos ao autoritarismo como meio prolongar a sobrevida de sua filosofia. Alianças entre autoritários e liberais de fancaria marcaram a última década, desorganizaram as instituições e até mesmo as contas do Estado. Houve quem chamasse isso de “novo”. 

Quis a fortuna que a tudo isso se adicionasse o vírus. A pandemia do Covid-19 nada inventou, apenas catalisou a percepção do mal-estar. Uma revolução se fazia, sim, é verdade. Mas, o rescaldo de corpos pelas ruas exalava a carnificina oriunda de transformações sem o cuidado antecipatório das instituições. Um ar fétido que já comprometia a saúde de todos, sem exceção. 

Os estudos mais sérios demonstram hoje que insistir na desigualdade brutal dessa revolução compreende a apostar no colapso total. Na destruição de tecidos sociais e até do planeta. Eis a hora e a vez dos políticos! Mas, miseráveis, onde estarão?

A crise de liderança política no seletor de canais de TV

Assim como o seletor de canais de TV, o Radéx e a Máquina Rolleflex, líderes políticos, caíram em desuso, assemelhando-se a peças de museu. Esse é o principal efeito do espírito “esse negócio de sociedade não existe” e, provavelmente, a maior expressão da crise do tempo presente: a crise de liderança política. No mundo e no Brasil.

Até a década de 1990, lideranças políticas eram notadas e reconhecidas. Na Europa, derrubou-se o Muro, fez-se a reunificação alemã, construiu-se a União Europeia. Na antiga União Soviética, Mikhail Gorbatchev pôs fim ao Império Stalinista – que de certo modo hoje tenta renascer. Na África do Sul, Nelson Mandela deixava a prisão para se tornar o líder e o símbolo da pacificação. Importantes líderes ganhavam expressão nos Estados Unidos, no Brasil, em vários países.

Hoje, paradoxalmente, a ausência é que parece gritar. Na Europa, pós Ângela Merkel, há na maioria dos países um sentimento de vazio. Em alguns deles, autocracias se estabeleceram. Na Rússia, Vladimir Putin fez-se o Novo Czar.  Estados Unidos e Brasil o caos e os riscos de destruição do tecido social, aliados à ausência de novas lideranças, obrigaram que se recorresse a líderes veteranos, do passado, de ontem. A renovação está encruada. 

O planeta passa por um grande realinhamento de forças econômicas e políticas, cada uma sentada em arsenais nucleares, sem sentido humanitário ou preocupação geral. A multipolaridade já é realidade. Evidencia, na verdade, a fragmentação. A tensão está posta na disputa por cada espaço, estado e mercado. Uma nova Guerra Fria foi despertada ao mesmo tempo em que a liderança política internacional está debilitada pela crise de projeto ou pelas autocracias, cujos projetos são um pesadelo. 

O Brasil tem os mesmos problemas do mundo, agravados pelos seus próprios. No governo, a figura do presidente da República tende preencher todo seu núcleo. Mas, Lula parece carecer de aggiornamento e de conselheiros deste tempo, não da época dos seletores de canais dos aparelhos de TV. 

Lula, ao lado do presidente chinês, Xi Jinping, inspeciona a guarda de honra durante a cerimônia de boas-vindas realizada no Grande Salão do Povo, em Pequim, em 14 de abril de 2023. Foto: Ken Ishii/POOL/AFP
Lula, ao lado do presidente chinês, Xi Jinping, inspeciona a guarda de honra durante a cerimônia de boas-vindas realizada no Grande Salão do Povo, em Pequim, em 14 de abril de 2023. Foto: Ken Ishii/POOL/AFP

Navegar pelos mares revoltos em que tem se arriscado é necessário. Mas, também perigoso. Na semana que passou, em viagem à China, o presidente assumiu riscos desnecessários em declarações, mais que ousadas, temerárias. Nesse campo, erros serão fatais. 

No Parlamento brasileiro, a crise de liderança política é mais evidente. Lá a história se dá como farsa, tragédia e Ópera Bufa. Tudo em um só tempo e lugar. De fato, Congresso atual é sempre pior que o anterior. Ulysses acertou na mosca! O que será do próximo?

Como um mar, o vazio se alastra. Cenas patéticas nas comissões demonstram a areia movediça da precariedade em que o país se meteu. Não há a menor ideia do que se passa no mundo – nem no Brasil. Tudo poderia ser resumido à bagunça na sala da Quinta Série “D”, quando o professor saiu. Tudo faz lembrar os tempos do seletor de canais dos aparelhos de TV.

Canais que oscilavam entre “A Família Trapo”, de “Carlo Bronco Dinossauro” e, mais tarde, “Os Trapalhões”. “Terra de Gigantes”, onde os protagonistas eram “pequeninos”. “Perdidos no Espaço”, “...perigo, perigo”, gritava o Robô destrambelhado. Assistia a tudo isso com meu pai, ele faz falta. Mas, chega de saudade e de “Sargentos Garcia”. Fantasiar-se de “Zorro” ou de “Rin-tin-tin” não resolve. Melhor colocar no futebol? Nem tanto. Sou Corinthians e aí a coisa também não vai bem.

* Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.

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