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O relativo e o absoluto

A caminho dos primeiros 100 dias, o balanço do início de governo é controverso. Evitar o maior mal é um modo tímido de fazer o bem. Um bem menor, às vezes, é um mal necessário

Carlos Melo, para Headline Ideias
#BRASIL21 de mar. de 238 min de leitura
"Lula é um símbolo poderoso. Mas, quase nunca presidentes são, em si, amalgamas naturais da política, do Estado, da Sociedade". Foto: Evaristo Sá/ AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias21 de mar. de 238 min de leitura

Festa de gente fina, elegante e sincera. Não há bolsonaristas. Petistas são alguns. Democratas, todos. Muitos têm restrições ao PT, mas ninguém torce pelo fracasso do governo.  Uma dissonância sutil chama atenção: para uma parte, o governo mal começou, mesmo assim, vai bem. Para outra, o governo começou mal e arrisca-se não ir a lugar algum. Um terceiro grupo avalia que, como as águas de um rio, o governo apenas segue. 

Que rio, qual o estado de suas águas ou para onde segue, ninguém responde. Há delicadeza no trato, mas os tempos são de incertezas e todos aprenderam a conviver com dúvidas. No Brasil e no mundo, ninguém sabe ao certo no que esse processo de múltiplas transformações vai dar: o processo é revolucionário e apenas aparentemente lento. Tudo é ar, o que foi sólido se desmanchou há décadas. 

Na festa, alegria. Comemora-se o aniversário da adorável anfitriã. Mas, também há dúvida e incredulidade na atmosfera. O salão é iluminado. A esperança, porém, pisca numa lâmpada fraca. Das janelas, uma brisa de receio. O ceticismo faz neblina. Não há terremotos no Brasil. Mas, todos esperam por outros tsunamis. 

Nem se trata da surrada locução do “meio-cheio-e-meio-vazio”. Percebo que é ruim como estilo e insuficiente como metáfora. Mais que discrepância de opinião, há confusão e desconforto de sentimentos contraditórios. Nota-se o desconcerto evidente em considerações pessoais. Uns dão maior importância ao “relativo”. Outros, ao “absoluto”. Ninguém ousa dizer onde moram o governo e a verdade.

O relativo

A ausência de prosperidade é comum. Mas, relativamente, comparado aos tempos de Jair Bolsonaro o governo Lula é uma ilha de excelência e racionalidade. Como se o país tivesse entrado no túnel do tempo e caído na idade média para, depois, tornar deslocado ao presente. Inúmeros exemplos sustentam esse sentimento, basta analisá-los pela ótica do bom senso – o que nem sempre é comum. 

Já não se fala em “intervenção federal” e o que isso queria dizer. O presidente República não se refere às Forças Armadas como “meu exército”. Milicos voltam aos quartéis, golpistas respondem processos ou já amargam cana. Não há cercadinhos ao pé dos palácios, o Estado voltou a ser laico. É o próprio governo quem faz propaganda a favor de vacinação. Retoma-se o respeito à ciência, ao meio ambiente e à toda forma de diversidade.  

O país recuperou lugar e respeito nos fóruns internacionais, além do diálogo com os principais governos e democracias. Parceiros comerciais são tratados com pragmatismo, busca-se investimentos sem retaliação ideológica. As pautas de costumes arcaicos se perdeu na impossibilidade do mundo moderno.  Os duelos são com bandeiras e palavras, não com armas.

Há problemas na relação Executivo e Legislativo, o hiperfisiologismo se desenvolveu nos últimos anos e está mais ancho. Força sua consolidação hegemônica. Isso traz embaraços para o governo, obrigado a virar com deslizes e escândalos também de aliados de ocasião. Novos “imexíveis” sobem ao palco, a sujeição a eles é indesmentível. A super heterogeneidade da base tende à dissipação da agenda e à governabilidade instável.

O fogo-amigo e os constrangimentos entre o PT e suas administrações são a festa da imprensa, às vezes. Confunde-se o cosmético e o essencial. A presidente do partido alveja ministros do governo do partido. É esdrúxulo que seja ela quem primeiro fale em “estelionato eleitoral”.  A dissonância parece combinada. Mas, não é. Nasce de uma insensatez estrutural. Que país é esse?

Redução de danos

Argumenta-se que nada disso é novo, sob Bolsonaro, tudo já existia de um modo mais agressivo. A conturbada relação Executivo-Legislativo é doença crônica não sujeita a tratamentos de choque. E há até visões acadêmicas que relativizam, adocicam e atestam a normalidade da voracidade do presidencialismo de coalizão. Quanto ao PT, bem... É o PT. Fábulas sobre sapos e escorpiões talvez exemplifiquem melhor a índole dos envolvidos.

No final das contas, são dados da realidade. O governo não tem como fugir – o bicho “pega” – ou mitigar diante da pouca popularidade e da impossibilidade de fazer reformas por meio de quem, na essência, deve ser reformado. O governo é ele mesmo e suas circunstâncias: um refém de vícios que não são apenas seus.

Nessa visão, a despeito de tudo, o saldo seria positivo. Como afirmou o filósofo Paulo Arantes, o governo Lula atuaria primordialmente na “redução de danos” e na tentativa de evitar o retorno do bolsonarismo. Faz sentido. E possivelmente, é tudo o que se tem neste momento. Evitar o maior mal é um modo tímido de fazer o bem. Um bem menor, às vezes, é um mal necessário.

O absoluto

Não imerecida, em termos absolutos a crítica é ácida e corrosiva. A comparação de Lula se dá consigo próprio, no passado. A tergiversação com desafios do terceiro mandato é incômoda. Justamente por ser experiente, com governos anteriores bem-sucedidos, sendo a liderança remanescente da redemocratização, espera-se do presidente clareza, ação e desempenho elevados. Capacidade de articular e formalizar novos pactos. Nem sempre é possível, posto que nada disso se dá de modo mecânico.

A campanha e a vitória eleitoral elevaram expectativas em relação a um processo de concertação nacional. Aguardava-se um governo capaz de costurar uma aliança ampla, alinhavando um projeto moderno articulado com o mundo. Assemelhado à Geringonça portuguesa, à Coligação Semáforo dos alemães, ou à antiga Concertación chilena. Um Lula Mandela, um Lula Mujica. Um Papa Francisco brasileiro. Mas, Lula é normal, mortal e limitado como sãos os seres humanos.

Expectativas talvez otimistas ou até irreais diante das dificuldades econômicas, políticas e fiscais legadas pelo governo anterior aumentaram o grau de decepção. Queixas são justificadas diante do indisfarçável anacronismo da visão de mundo – do presidente e da maior parte de seus colaboradores (não todos) – e da ausência de aggiornamento programático e ideológico da esquerda. E, do mais surpreendente: o pragmatismo reduzido do próprio presidente da República. Salvaguardas, quando falham, tornam-se o centro do problema.

O constrangido desencanto com a crescente irascibilidade de Lula se manifesta desde meados da campanha. Eleito, resistiu à formação de acordos mais amplos e já na transição de governos desprezou setores da elite democrática e reformista. Pareceu satisfeito com a frente limitada. Agiu na crença de que raspas e restos bastariam ao colossal apetite de um Centrão robustecido. Charme e sedução ajudam, mas não fecham as contas dos painéis de votação. 

De frente e de fundos

O governo é de Frente; as alianças são de fundos. A heterogeneidade da flora e da fauna partidárias é agravada pela carência de projeto homogêneo. Na indefinição de rumos, abundam “genialidades” de quem apenas supõe que, ao reproduzir o generalismo dos discursos presidenciais, estará em linha com o governo. Num samba de ministros doidos, imagina-se prestar bons serviços.

Lula é um símbolo poderoso. Mas, quase nunca presidentes são, em si, amalgamas naturais da política, do Estado, da Sociedade. Na maioria das vezes, nem do ministério. Diretrizes gerais podem ser reconhecidas, mas a definição clara de rumos sintonizados com a complexidade do presente é o que unifica a ação e dá rosto ao conjunto do governo. A liderança e sensibilidade aguçada do presidente são importantes, mas insuficientes.

Sem um núcleo formulador e gerencial, o ambiente resta dispersivo. Um ou dois ministros centralizadores, encastelados em seus gabinetes e em disputa entre si, dificilmente resolverão os problemas do governo. Mais provável é que os agravem. Bodes expiatórios, ao final, serão dados em sacrifício na primeira reforma ministerial. 

Sintonizado na gestão e na política, o núcleo duro, alinhado pelo presidente, pode configurar a razão programática do governo e enfrentar desafios históricos. Além de exercer ação pedagógica sobre a sociedade e reparadora em relação ao sistema político. Isso ainda não existe. Mas, é tarefa para ontem.

Tudo faz com que o resumo dos primeiros meses do governo seja controverso, oscilando entre visões condescendentes e avaliações que se localizam entre o preocupante e o decepcionante. Até aqui, o balanço do governo é um misto de sentimentos que tende à esquizofrenia e à bipolaridade. Trabalho mais adequado à psiquiatria do que à ciência política.

Salvar o governo de si mesmo

Com avançar da festa, conversas periféricas confluem ao centro, mesas se unificam, almas quase embriagadas se encontram. Aflições individuais migram para o mesmo cadinho de preocupações. Sonhos e angústias são compartilhados no nível superior que é a cumplicidade.

Há justa preocupação com o amanhã: o projeto de país democrático e livre de alucinações e apocalipses. Tudo é muito simples, embora ninguém saiba: busca-se o humano e a civilização. Todos têm razão. Ainda assim, no receio da barbárie, dorme-se com fome de futuro. 

Altas horas, o som, o vinho, o burburinho da festa cessam paulatinamente. Vozes se moderam. Elevada, porém, é a endorfina da ansiedade. Antes do fim, tudo se funde: relativistas reconhecem faltas, ausências e a mediocridade de um contentamento apenas básico, quase superficial. Já no elevador, alguém evoca Renato Russo: “quem roubou nossa coragem?” 

Os amigos do absoluto reconhecem, por sua vez, o tamanho do desafio. Ponderam que, de fato, nada é fácil, e é necessário transigir em algum grau, pelo menos. Por enquanto, pelo menos. Todos concordam que se o governo não for salvo de si mesmo, o país tampouco será. Mas, o governo não é obra aberta nem coletiva. A responsabilidade não é transferível. Culpas, tampouco. No presidencialismo, o presidente come do bom e do melhor, mas paga os patos.

A festa já é memória. A gente fina, elegante e sincera rende-se exausta, os músculos do convencimento pedem descanso. A música terminou, o gelo acabou e a sociedade está em falta. Bocas se calam. Mesmo assim, o desconcerto da noite nunca tem fim. O barulho de talheres e taças ecoa dentro de cada um. Porque a gente é assim: ânsia de política e referências de rock nacional?

Carlos Melo é cientista político. Professor Senior Fellow do Insper.

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