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Derrotas do governo: colapso dos modelos de formação de maioria?

Lula é alvo tanto daqueles que, romanticamente, defendem certa pureza de princípios, como dos que entendem justamente o contrário

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA9 de mai. de 2311 min de leitura
Em recente entrevista, o presidente da Câmara afirmou que “o orçamento é muito mais democrático se decidido por 600 parlamentares do que isso feito por 10 ministros”. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Carlos Melo, para Headline Ideias9 de mai. de 2311 min de leitura

O governo do presidente Lula amarga as primeiras derrotas no Congresso Nacional. Na semana que passou, foram duas, só na Câmara. O Projeto de Lei 2630, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet – conhecido como o PL das Fake News – não foi votado. E dois decretos do Executivo, que alteravam a regulamentação do marco legal do Saneamento Básico, tiveram trechos derrubados. Os alarmes soaram já nos primeiros testes.

Também duas CPIs contrárias aos interesses do Planalto foram aprovadas e devem ser instaladas nos próximos dias: a CPMI do 08 de janeiro, e a CPI do MST. Nada indica que obstruirão votações importantes como do “Arcabouço Fiscal” e, mais adiante, da “Reforma Tributária”. Mas, é evidente que constituem uma pauta dispersiva e negativa quando seria vital expressar uma agenda de realizações e boas expectativas. 

Claro que, na teoria, são apenas eventos de um jogo onde o poder ainda não se consolidou; um processo em andamento e, talvez, em fase de turbulências que precedem acomodações. Mas, o fato é que o Executivo ainda perambula sôfrego pelos corredores do Congresso sem consolidar maioria digna e segura para chamar de sua. Isso é pouco comum já com quase 5 meses de governo. 

Lula chamou a atenção dos responsáveis pela articulação política, reuniu-se com o presidente da Câmara, Arthur Lira, e ameaçou ele mesmo assumir a frente de operações. É um risco, pois o seu governo perderia, por assim dizer, a instância recursal: não haveria arbitragem, nem a quem reclamar. Menos ainda a quem Lula pudesse culpar por novas derrotas.

A orientação é liberar todos os recursos de emendas parlamentares quanto necessário. Deixar que encham as burras. Diz-se no meio que “quando o dinheiro não resolveu é porque foi pouco”. O problema é que as arcas têm o tamanho de um oceano. Haja fundos. 

A dinâmica da formação de maioria vem se transformando. É possível que nada seja suficiente para deter esse processo. A hipótese a considerar é que há uma crise de modelo e a simples ação direta e pessoal do presidente pode até amenizar o problema, mas não o resolverá. 

A fragilidade de Bolsonaro e a apertada vitória eleitoral de Lula podem ter criado condições para mudanças estruturais deletérias, hoje em conflito com a tentativa de rearticular um antigo modelo, que de resto pode estar ultrapassado. Em vista disso, um colapso estaria se formando. A ver para compreender.

Modelos de formação de maioria

Ideal como método seria forjar coalizações a partir de grandes projetos de futuro. Com a legitimidade da vitória eleitoral e a mobilização social, os partidos se alinhariam – a maior parte, a favor do governo. Pequenas concessões aqui e acolá dariam feição à coalizão. Instável e dependente de compromissos, a maioria seria política e programática. Por exemplos, são assim a “Geringonça” portuguesa e a atual coalizão alemã.

Mas, no mundo concreto do sistema político brasileiro, avesso a princípios etéreos e a demonstrações de desapego político-material, o ideal não tem lugar. O romance realmente não tem vez na política com seus interesses concretos. Menos ainda diante de lideranças incapazes de aglutinar e construir alianças mais amplas com a sociedade. 

O que se viu ao longo de décadas foram pactos e arranjos bem realistas e integrados à cultura política nacional, cujo padroeiro, São Francisco de Assis, é operador espiritual do sistema “é dando que se recebe”. Pelo menos três modelos distintos de formação de maiorias congressuais foram colocados em prática, sobretudo, a partir da Câmara dos Deputados com natural acomodação do Senado. 

Primeiro modelo: o governo define a base

No modelo mais natural à cultura política, a composição do Poder Executivo define a formação da base. Considerado o elevado número de partidos e sem maioria conquistada na eleição, os cargos no governo são compartilhados por meios de dois grandes recortes: bancadas e região. As maiores bancadas são recompensadas com “número de ministérios compatível com sua importância”. Maior a bancada, maior a quantidade de ministérios. Em paralelo, dá-se atenção aos estados atraindo governadores. 

Isso depende de partidos minimamente coesos: direções partidárias atuantes e lideranças de bancadas representativas e capazes para articular e convencer parlamentares mais ou menos disciplinados pela fidelidade partidária. O ministro escolhido expressa um pacto, ministério é composto e a bancada se ajusta. Trata-se do “peemedebismo” avant la lettre. O antigo PMDB que expressava o mais alto grau de compromisso fisiológico e dava seu nome a um “gênero”. Marcos Nobre, filósofo político, demonstrou esse quadro com incomum capacidade. 

Foram-se o tempo e o modelo. Partidos não mais possuem disciplina e coesão internas. Fracionados ao limite, sua unidade vocal não é mais um coro, mas o canto solo do parlamentar, individualmente. As bancadas substituem as legendas e são estilhaçadas pelos interesses e ações avulsos de seus membros. Mesmo regionalmente, a fragmentação inibe pactos mais amplos. O resultado é a dispersão sentida no presente. 

Segundo modelo: Lei de Muricy

Com Jair Bolsonaro, os líderes de uma miríade de partidos menores buscaram o mínimo de aglutinação sob o abrigo do Centrão, um aglomerado de interesses dispersos, território do antigo Baixo Clero. A expertise de seus próceres viabilizou recursos que serviram para cooptação individual, não mais coletiva. Adrenalina injetada diretamente nas veias, a emenda individual aprovada no Orçamento da União é hoje o instrumento mais elementar e importante da ação parlamentar. 

O relator do orçamento assume as vezes de uma espécie de contador-despachante para cada deputado ou senador que se resigne a ser, na prática, pouco mais que um vereador federal. Indicado pelos presidentes da Câmara ou do Senado, esse relator mantém com seus padrinhos a relação de mais absoluta sintonia e fidelidade. Juntos, com a faca nas mãos, cortam o queijo do governo.

Esse é o segundo modelo de formação de maioria: na Lei de Muricy, onde cada cuida de si, “quem quer rir tem que fazer rir”. O Executivo acomoda-se dependente de acertos pouco transparentes feitos no Congresso. O selo imprimatur do presidente define o “libere-se”. Não há prioridade, nem planejamento central de políticas públicas. Não há governo, na verdade. 

Em recente entrevista, o presidente da Câmara afirmou que “o orçamento é muito mais democrático se decidido por 600 parlamentares do que isso feito por 10 ministros”. Qual o poeta, Lira é um fingidor: sendo esse o critério, mais democrático ainda seria o orçamento participativo, em assembleia popular, não? Se parlamentares têm votos, o presidente da República, que nomeia os “10 ministros”, também tem.

Instituições têm papel definido pela Constituição, são pensadas para serem tão legítimas quanto eficientes. Não deveriam se ajustar sofismas fisiológicos. 

Há quem “passe o pano” para esse tipo de aberração. Análises rasas enxergam nesse jogo certo sentido e ação de “uma espécie de Primeiro-Ministro” – no caso, Arthur Lira ou Davi Alcolumbre (quem de fato articula esses interesses no Senado). Ora, ora, ora... Querem afogar o Parlamentarismo numa poça? 

O terceiro modelo: híbrido e castrado

O terceiro modelo seria um misto, um ajuste híbrido entre a composição ministerial e o idealismo programático. A formação de maioria se daria por meio dos ministérios e da ação dos ministros, mas também com relevante papel de uma agenda governamental, com aperfeiçoamentos institucionais, transformações estruturais e reformas adequadas ao desenvolvimento econômico e social. E, claro, com amplo apoio na sociedade. 

Foi o caso dos governos de Fernando Henrique Cardoso, com o Plano Real, e mesmo de Lula, com a emergência do crescimento econômico e da premência da inclusão social. FHC e Lula, é claro, fizeram concessões. Cederam cargos e recursos, mas formaram maiorias e colheram frutos na condução do processo político e na aprovação de reformas no Parlamento. Conduziram o atraso, mas não perceberam o que ali se gestava.

Data dessa época grande euforia com a suposta eficiência do presidencialismo de coalizão brasileiro. Inúmeros artigos foram escritos em louvor à sua gestão. Sem considerar a qualidade do processo, não supunham que a evolução desse modelo se daria em ciclos, com voracidade progressiva. Ao mesmo tempo em que os recursos públicos se esgotavam, as exigências aumentavam. 

O edifício começou a desmoronar com Dilma Rousseff, na falta de uma agenda consensual e na incapacidade ou indisposição de gerir demandas crescentes que se avolumavam na base ao mesmo tempo em que a crise econômica se aproximava. Foi o presidencialismo de coalizão de “quarto mandato”: recursos esgotados e insatisfação da base. Um efeito larica com geladeira vazia. 

O chefe do Executivo passou a ser garroteado por um hiperfisiologismo. Levado a cabo pelas hábeis mãos de Eduardo Cunha, o modelo híbrido descobre-se obviamente estéril. Não procria e nada há a fazer a não ser ceder ou se entregar até o esgotamento final. Cunha fez seguidores e discípulos. 

Perspicaz conhecedor desse ambiente, Michel Temer “deu um reloading” no processo: transformou o que seria um enfadonho “mandato tampão” num simulacro de governo de primeiro mandato, com renovação da base no Congresso e reformas estruturais. Ainda que politicamente desgastante, chegou ao final com entregas importantes aos agentes econômicos. 

No meio do tiroteio

O atual governo arrisca-se num conflito imponderável e numa luta provavelmente inglória. Há uma briga de facas num quarto escuro onde os modelos de formação de maioria (ministérios versus orçamento secreto) se engalfinham num duelo de derrotados ex ante

Ministérios já não interessam – disse Arthur Lira. E nem interessa aos ministros entregarem-se à toda sorte dos orçamentos secretos que não controlam. Caso clássico é do União Brasil, cujo quinhão de três ministérios não resulta em qualquer compromisso. Menos ainda, votos. O “peemedebismo” deu lugar ao “unionismo”?

História e reputação ainda contam, entretanto. Pouco, mas contam. Lula e seus companheiros têm dificuldade em se submeter ao modelo de rendição total de que Jair Bolsonaro foi presa indolente. Como de resto seria a natureza de qualquer governo programático, renunciar à responsabilidade de políticas públicas integrais e integradas ao todo é inconcebível. Prerrogativa é também poder.

Os recursos não são apenas finitos. E, sobretudo, escassos. São disputados ferozmente, seja pela convicção dos militantes e pela diligência dos técnicos, seja pela voracidade de um fisiologismo insaciável. As “bases”, o clientelismo e esquemas os mais variados não são suscetíveis a ponderações. À falta de uma liderança capaz de dar um basta – e de, obviamente, sustentá-lo na opinião pública – trava-se uma guerra sem fim. 

O conflito entre modelos de formação de maioria coloca o governo no meio de um tiroteio: Lula é alvo tanto daqueles que, romanticamente, defendem certa pureza de princípios, como dos que entendem justamente o contrário. É sutilmente questionado pela burocracia de seu próprio governo, que se opõe ao desperdício de recursos escassos, como também é pressionado por quem os tem como combustível vital de ação política. 

Primeiros acordes de uma ópera rock?

Naturalmente, as circunstâncias colocam em xeque a articulação do governo, menos culpada por derrotas do que vítima de impasses e do esgotamento de modelos de formação de maioria.

As derrotas da semana que passou podem até não representar necessariamente isso, mas também podem ser a antessala da desagregação. O PL das Fake News, mais que controverso, teve forte interferência das Big Techs. Mas, sua aprovação, no entanto, expressaria força do Executivo, que com ele se envolveu. A não votação foi também resultado da revolta da base de Arthur Lira, igualmente afetado pelos impasses e pela ansiedade furiosa de seus comandados amotinados. 

Arthur Lira (PP-AL) durante sessão da Câmara dos Deputados que tentou votar o PL 2630, o PL das Fake News, em Brasília, em 02 de maio. Foto Lula Marques/Agência Brasil.
Arthur Lira (PP-AL) durante sessão da Câmara dos Deputados que tentou votar o PL 2630, o PL das Fake News, em Brasília, em 02 de maio. Foto: Lula Marques/Agência Brasil.

Já a votação dos Decretos do Saneamento Básico teve de tudo um pouco: desde justa e necessária revisão de medidas de açodamento ideológico do Executivo – o sistema de freios e contrapesos teria funcionado --, até a intenção de derrotar o governo sob qualquer pretexto. O mais preocupante, porém, está nos números da votação: apenas 136 parlamentares se perfilaram com o Planalto. 

Foi governo que não mobilizou a base ou a base é mesmo só isso? Em sua primeira votação relevante, o Executivo ficou abaixo de 171 votos mínimos e essenciais à blindagem e à governabilidade. Certamente, é precipitação falar em crise terminal: derrubar os decretos pode mesmo ter vindo a calhar e interessado até a aliados. Mas, os Profetas do Impeachment – bom nome para uma banda – consultam oráculos e já arriscam acordes de guitarras de uma ópera rock conhecida. 

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper.

  

 

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