Conecte-se

Ideias

#POLÍTICA

Os nós entre Lula e Bolsonaro e a ampulheta do tempo que disparou

Neste momento, tanto Lula quanto Bolsonaro, por motivos diferentes, parecem dar passos largos em direção à decadência ou à inviabilização de seus futuros políticos

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA2 de jun. de 239 min de leitura
Lula e Bolsonaro gesticulam durante debate presidencial televisionado em São Paulo, em 16 de outubro de 2022. Foto: Nelson Almeida/AFP
Carlos Melo, para Headline Ideias2 de jun. de 239 min de leitura

Os destinos de Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro não apenas se entrelaçaram como estabeleceram dependência. Mesmo que a vida política de um não limite em ser apenas o contrário da outra, admita-se: tornaram-se laços dependentes. A despeito da longa história política de Lula – basta citar os dois mandatos –, sua volta ao Planalto se deu majoritariamente em função da possibilidade de derrotar Jair Bolsonaro.

Por sua vez, Bolsonaro se fez antítese da esquerda, do PT e de Lula. Muito de seu status reside em ter-se tornado líder circunstancial da extrema-direita que procurava quem vocalizasse neuroses contra o fantasma comunista – entre outros – e perfilasse forças contra o PT e seu líder operário. 

Bolsonaro resvalou os 50% do eleitorado em virtude do antipetismo. Lula ultrapassou, triscando, essa marca pela união de todo o antibolsonarismo. É uma espécie de “Samba em Prelúdio”, a bela canção de Vinícius de Moraes adaptada à barbárie destes dias.

Importante notar que, no final, as forças políticas mais relevantes não são Lula, nem Bolsonaro ou seus partidos. Não se trata de lulismo (maior que o petismo) ou de bolsonarismo. O país não está no campo da afirmação de uma liderança majoritária. Ambos, lulismo e bolsonarismo, são subconjuntos do antibolsonarismo e do antipetismo, as verdadeiras forças. 

Há tempos, a maioria não vota a favor. Vota contra. E forma grandes blocos contra os símbolos e os demônios de suas obsessões.

À ausência de um deles, Lula ou Bolsonaro, seria possível que a imprecisamente denominada "terceira via" – inviável na presença de ambos – assumisse um rosto. E pudesse, enfim, se transformar – em alternativa ao "mito" restante. Herdaria o antipetismo, na inviabilidade de Bolsonaro, ou o antibolsonarismo, na ausência de Lula. 

Mas, num mundo em que o “se” não paga um mísero pedaço de pão amanhecido, as margens opostas de onde se movem o antipetismo e o antibolsonarismo se dilatam e oprimem o centro. A terceira via jaz encurralada ente dois paredões. 

A questão principal deste artigo, no entanto, é que, neste momento, tanto Lula quanto Bolsonaro, por motivos diferentes, parecem dar passos largos em direção à decadência ou à inviabilização de seus futuros políticos.

Uma fase angustiante a ser superada

A aguda contradição entre ambos os blocos – antibolsonarista e antipetista – mantém o sistema num equilíbrio tenso e precário. Não há diálogo. No Congresso Nacional, estabelece-se uma rinha: convoca-se ministros a eito, tratados com agressão, forma-se um ambiente cujo objetivo é a lacração, no more. Enorme perda de tempo e energia: o país não discute suas reais contradições. 

Aproveitam-se disso as forças espertas e pivotais. Mobilizadas por um ou noutro campo, levam vantagens para casa. Eis o Centrão. 

A política se empobrece e o humor da população em relação a ela piora, fortalecendo a dialética dos blocos contrários. Ninguém sobe à tribuna para discutir o país. Celulares às mãos, parlamentares espumam fel e nos melhores ângulos que conseguem gravar e postar nas redes sociais. Estas são alimentadas e alimentam um círculo vicioso de horrores.

Uma grande cilada colocou o país num buraco. Na sanha de escapar, paradoxalmente, ninguém para de cavar.   

Não se trata de afirmar que as forças sejam equivalentes. Não há esse tipo de paralelismo entre Lula e Bolsonaro. Não são gêmeos, nem assemelhados. Lula tem defeitos, mas luta no campo da política: tem idiossincrasias ideológicas e relações para lá de controversas, erra e acerta – ultimamente, mais erra do que acerta. Mas, não é um autocrata. Não se lhe imagina atuando contra a ciência, o Congresso, o Judiciário ou contra a imprensa. Já Bolsonaro é figura de outro álbum. 

Não são iguais, mas é preciso reconhecer que são escoras dos muros de um e de outro, num terreno que já perdeu o senso de gravidade. O país precisaria superar essa fase angustiante. 

Bolsonaro vê o precipício que lhe sorri

Tivesse construído amplo arco de alianças ao longo da eleição e na composição do governo, Lula poderia ter ajudado a superar esse processo: aplacaria o antipetismo em seu flanco menos sectário, isolaria o bolsonarismo e atrairia o Centrão para que comesse em suas mãos. Mas, novamente o “se” não faz preço. Lula não avaliou assim, ninguém aproveita o que não consegue ver. 

A superação desse ambiente conturbado pode, no entanto, se dar pela inviabilização política de Jair Bolsonaro e até mesmo por sua prisão, que não pode ser descartada, como hipótese, pelo menos. 

Tipo de desenlace que pode ser inevitável: no Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes tem aumentado sua influência e, assim, a possibilidade de decisão jurídica majoritária contra o ex-presidente cresce. Fatos como os revelado nesta semana – o extraordinário abuso eleitoral dos recursos da Caixa Econômica Federal – são de gravidade ainda maior que os anteriores.

Há, em resumo, um punhado grande de denúncias – desnecessário listá-las – que já resultaram em processos. Nos médio e longo prazos, tudo isso pode significar os primeiros e dolorosos passos na direção de um caminho sem volta para o ex-presidente. Tudo isso mostra à Jair Bolsonaro um precipício que lhe sorri. 

Haverá transtornos, é claro. O extremismo de direita tende a reagir de seu modo básico: o barulho ensurdecedor nas redes sociais e a truculência física nas ruas. Difícil imaginar Bolsonaro se comportando como Lula, quando levado da sede do sindicato em São Bernardo para a sede da PF, em Curitiba. 

O silêncio é eloquente: Jair Bolsonaro e os seus têm submergido diante dos acontecimentos. No modus operandi da turma, o enfrentamento é a base. O recuo só se dá mesmo diante de um precipício. Para o bolsonarismo, a verdadeira visão do inferno parece próxima demais.

A descrente utilidade de não ser Bolsonaro

Sendo resultado de uma decisão juridicamente fundamentada, sem atropelos e falhas processuais, baseada em fatos e suportada de sólidas provas, medidas mais duras contra Bolsonaro seriam de inegável avanço institucional. Independentemente de ser quem se trata, demonstraria a determinação de purgar erros e corrigir rotas.

No entanto, esse cenário não parece ser exatamente boa notícia para quem hoje sustenta sua ação política na contradição e no conflito com o ex-presidente. De inimigo íntimo, conveniente adversário e espécie de parceiro no duopólio do mercado eleitoral do Brasil, Bolsonaro pode deixar de ser útil para Lula. O que complicaria ainda mais a vida do atual presidente.

Até aqui, seu governo vem se notabilizando em ser apenas o que não é: não ser Bolsonaro. E, por uma contradição lógica, ninguém pode não ser o que não mais existe. O raciocínio é tortuoso. Mas, em sentença direta quer dizer: a desgraça de Jair Bolsonaro retira uma importante blindagem de Lula.

Superada a fase Bolsonaro – substituído pelo conservador moderado como Tarcísio de Freitas ou alguém de mesmo princípio ativo –, Lula não perde apenas o apelo. Perde grande o charme. Se foi o antibolsonarismo que o elegeu, o que fazer se ele deixar de fazer sentido e não mais houver? 

Dificuldades do governo e conciliação de fatores

Junte-se isso às enormes dificuldades do atual governo: desorganização interna, incapacidade de formação de maioria no Congresso Nacional, notória perda de controle da agenda, acelerado desgaste da política externa, ausência de projeto que vá além de um básico e obrigatório ajuste fiscal; olhos que insistem em ver o passado por não conseguirem mirar o futuro. Tudo isso criar um ambiente perigoso para Lula.

Argutos observadores da política, com origem no PT inclusive, demonstram preocupação: no jogo de bilhar, Lula está perdendo bolas após bola. Frequentemente, está em sinuca. Mesmo que involuntariamente, Geraldo Alckmin, aos poucos, pode ser transformado na bola branca, a bola de impulso.

Há também o grande problema da política nacional que é sua incapacidade de aggiornamento diante de um mundo em intensa transformação: a economia e a sociedade de terceiro milênio. E, neste aspecto, as cobranças não devem se dar apenas em torno do presidente e de seu governo. É mesmo o sistema político, a quase totalidade de seus atores mais relevantes, que parece terem ficado para trás, incapazes de olhar para o futuro.  

A disfuncionalidade do sistema tem se evidenciado a cada dia. Mais em relação ao governo federal, em particular, apenas em virtude de sua centralidade. Mas, trata-se de uma obra coletiva.

O fato é que somando tudo, o saldo é negativo para Lula. A percepção de incapacidade do governo – e do sistema – aumenta justamente no instante em que o bode na sala, Jair Bolsonaro, perde força. Não tarda, deixará de assustar. 

Nada em política ocorre por apenas um fator. É a conciliação de vários deles que pode criar o caos. E isso deveria preocupar (ainda mais) o governo. O presidente pode perder o sentido político e eleitoral. 

A persistir o isolamento no Congresso Nacional, as dificuldades de consolidação de um programa, cometendo erros em frentes caras, como a ambiental e a política externa, corre riscos de inefetividade. O fantasma do pato manco pode rapidamente dar o ar da graça.

Lula contra a ampulheta de um tempo político que se esgota quanto mais a utilidade de não ser Bolsonaro se esvai e os resultados nas várias frentes não vêm ou se perdem. Cedo para tudo isso: o governo mal completou cinco meses. Mas, para ele, deveria ser um imperativo a urgência de assumir-se, enfim, como um ente funcional, realizador e agregador de várias forças do país. Essa deveria ser sua blindagem.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto, em 29 de maio. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto, em 29 de maio. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Para não dizer que não se falou em Venezuela

Ao receber Nicolas Maduro, nesta semana, com pompas e alegria, Lula se assemelha ao sujeito que acolhe um parente distante, rude e mal-educado, com seus amigos de farra, como quem tenta recuperar laços de família. Os laços de sangue são distantes ou até forjados, mas como justificar que já não têm importância que pareciam ter na infância? Forja-se a fraternidade que o tempo matou.

O parente tem má fama, é grosseiro e desagradável; estraga a harmonia dos ambientes e afugenta convidados, que se indignam com sua presença e com a negligência do dono da casa. De um modo fingidamente natural, porém constrangido, como de um ator canastrão, o dono da casa busca justificar o mal jeito do camarada como detalhe, irrelevante narrativa. Nem ele acredita nisso.

Paixão demais para pouco amor. Em troca de quê? E a que preço? Nem a mais deturpada ideologia, nem a teimosia menos pragmática são capazes de explicar.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

 

#POLÍTICA
LULA
BOLSONARO
VENEZUELA