Conecte-se

Ideias

#POLÍTICA

Reforma tributária e alinhamento de interesses diversos

Ainda há muita incerteza em tudo e a disputa deve ir longe, mas se Lira entregar o que tem prometido, uma frente realmente ampla se estabeleceu

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA5 de jul. de 239 min de leitura
O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante entrevista após reunião na residência oficial da presidência do Senado, em Brasília, em 23 de maio de 2023. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Carlos Melo, para Headline Ideias5 de jul. de 239 min de leitura

Arthur Lira vestiu o traje de gala das reformas econômicas e desfilou com a determinação dos senhores de si, consciente dos ganhos que terá ao patrociná-las. A roupa nova tem dupla serventia: para o mercado, fica como uma espécie de CEO que realiza um IPO que incentiva a compra do país por investidores agora mais confiantes. Gera euforia e lhe garante certa blindagem política. Para o Poder Executivo, apresenta-se como um líder imprescindível e articulador eficaz que o governo não tem. 

É uma roupagem que lhe dá ares republicanos e de modernidade que Lira, na essência, não possui. Sua alma, como se sabe, é o latifúndio. Mas, a história está repleta de casos assim: os interesses do indivíduo, por vias tortas, às vezes coincidem com os interesses do país. E, ao final, menos relevantes são suas intenções. Como disse Deng Xiaoping, “não importa a cor do gato desde que cace o rato”. 

O decidido protagonismo reformista do presidente da Câmara ainda lhe traz outros bônus especiais: pode retirar de cima de si o foco de escândalos que envolvem o seu nome e os de gente de sua confiança. Além, é claro, de lhe dar aval e certa legitimidade no jogo do “quem quer rir tem que fazer rir” da política brasileira: poderá exigir do governo algumas “jóias da coroa” que o presidente da República tem relutado em ceder. E não seria por ameaça, mas por compromisso e alguma gratidão.

De algum modo, pode ser uma importante mudança no jogo: os pagamentos ao Centrão deixam de ser antecipados para serem feitos a Contra Entrega. Já seria um avanço. Uma boa alteração no “sistema de compensação” vigente. 

Ainda há muita incerteza em tudo e a disputa deve ir longe, mas, se tudo isso ocorrer e Lira entregar o que tem prometido, uma frente realmente ampla se estabeleceu. Ainda que pontual, um espaço estratégico foi aberto. Uma importante trégua na queda-de-braço que o Legislativo venceu e se impôs a Bolsonaro, e que se trava num quase impasse em relação a Lula. 

É evidente que a natureza desses acordos é eticamente questionável. Contudo, a política assume sua própria ética, uma vez que a moral é, nesse campo, resultado não de princípios nascidos no purismo, mas da correlação de forças. Max Weber, talvez, retirasse daí um bom exemplo de sua “ética da responsabilidade”, aquela voltada para fins, não para convicções. 

Objetivamente, o modelo de reforma Tributária que o Brasil discute, defendido pelo governo e, agora, apoiado por Lira – que no passado obstruiu sua tramitação – pode significar melhoras sensíveis para o ambiente de negócios do país. Desfazendo o caos de leis e regimes tributários desenvolvido ao longo de anos, pode facilitar a atividade empreendedora, incentivar o investimento e favorecer o crescimento econômico e social. 

Pelo menos é assim que algumas dezenas de técnicos e economistas respeitados em diferentes vertentes ideológicas enxergam a reforma proposta, prestes a ir à votação na Câmara Federal. 

E é aí que a coisa pode se complicar: a reforma está em vias de ser votada, mas ainda não o foi: há um longo e talvez tortuoso caminho até sua aprovação. E muitas forças ainda serão testadas.

Onde mora o perigo

Toda reforma tributária fere interesses: uns ganham, outros perdem. O mais importante é o que todos podem vir a ganhar no longo prazo. O aumento da atividade econômica, por exemplo, tende a ser benéfico para indivíduos em geral, para a União, para estados e municípios. O problema é abstrair perdas imediatas e fugir do curto-prazismo que norteia, sobretudo, os interesses eleitorais. 

Arthur Lira e o governo se defrontarão com interesses contrariados organizados em lobbies poderosos: setores econômicos, alguns tipos de corporações de profissionais liberais, Zonas Francas e atividades especiais, governadores e prefeitos. Grupos que possuem recursos, com capacidade de mobilização e influência econômica, política e social. 

A determinação (bem) interessada do presidente da Câmara, ladeado pelo governo, terá mais força que tudo isso? A ver.

A reforma passará por duas votações na Câmara e, depois, duas no Senado – noves fora, todos os destaques que devem ser apresentados ao texto. Isso tudo supõe conflito e negociação. Nada é simples. Há incertezas despertadas por interesses e incertezas reais em relação aos efeitos de uma reforma com essa natureza: mexer no bolso de todos. “Inseguranças jurídicas” e “disposições inconstitucionais” serão alegadas; a defesa extemporânea do pacto federativo será alardeada. 

Muito disso deve ir parar no Supremo Tribunal Federal (STF), percorrer seus escaninhos, sessões de Turmas e no Plenário, pedidos de vistas, votações demoradas. E, claro, isso tudo criará expectativas e, talvez, alguma paralisação. Cabe aqui análises e opiniões dos especialistas da área a respeito do papel que o Supremo pode ter no processo. Leigo, não saberia explorar a questão para além do óbvio.  

O certo é que, antes, se dizia que reformas tributárias são feitas somente em momentos de comoção e grande entendimento nacional ou mesmo por gestos de força, quando um lado do lado político pode impor sua vontade ao outro. O Brasil não está nem em uma ou outra situação. Logo, fazer a reforma nas atuais circunstâncias não é apenas inovador quanto também é duvidoso. É bom saber disso.

Mas há atenuantes e bons augúrios

No passado os governadores faziam sua política com mais força e maiores chances de sucesso: comandavam as bancadas de seus estados destinando recursos aos interesses dispersos de cada parlamentar. Eram veto players, a “política de governadores” já foi uma instituição nacional. Hoje nem tanto. A União centraliza muitos recursos e há pouco o que governadores possam oferecer que o governo federal e seu intermediário, Arthur Lira, não possam dobrar. 

Ademais, neste momento, o conjunto de governadores já não é tão coeso quanto no passado. A muitos estados a reforma passou a ser interessante. Até o poderoso estado de São Paulo está interessado e se alinhou a importantes consensos. Se seu governador, Tarcísio de Freitas, tem capitalizado politicamente ao coordenador de certo grupo de colegas, é verdade que seu discurso não é tão hostil. Dada a centralidade econômica de São Paulo, não é pouca, é muita coisa. 

Na manhã de quarta-feira, 05 de julho, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o governador paulista protagonizaram rara cena nesses tempos de sectarismo – provavelmente, enraivecendo ambas as torcidas que representam. 

Após encontro no ministério, juntos, desceram à porta do prédio e atenderam a imprensa com gestos e falas de espantosa sintonia: Haddad está aberto para qualquer aperfeiçoamento possível na reforma – seja de São Paulo ou do Amazonas; Tarcísio afirma haver 95% de concordância, sendo o dissenso facilmente contornável. Muito mais ligado à forma do que ao mérito da reforma. Não custa lembrar que, até ontem, os dois eram viscerais adversários eleitorais.

Outros governadores influentes e de visibilidade nacional – como é o caso de Eduardo Leite (RS) ou Renato Casagrande (ES) – têm se colocado ao lado da reforma, apesar de seus eventuais custos de curto prazo. Governadores do Nordeste, aliados ou pelo menos de boa interlocução com o Governo Federal, tendem a dar importante suporte político. Há, inegavelmente, um processo acumulado ao longo dos anos que amadureceu consciências e amoleceu resistências.

É verdadeiro que entre os municípios o consenso não parece tão bem costurado. O país é muito diverso; os interesses, dispersos e as incertezas ainda maiores. Prefeitos temem perder autonomia para os estados e o afirmam não sem alguma razão. São 5.569 deles, a coordenação e a articulação dessa multidão é bem mais complicada do que entre 27 governadores. Alguns municípios são tão pequenos que tendem a ser esquecidos.

Mas, também é real que desde a promulgação da Constituição Federal, o sistema político foi leniente e favoreceu a criação pouco criteriosa de centenas de municípios que, a rigor, não teriam expressão para existirem, podendo subsumir em municípios maiores e mais representativos demográfica e economicamente. Mas, ao tornarem-se relativas estruturas de poder por todo o país, operando pequenas máquinas e sinecuras, não querem, óbvio, desaparecer. 

Mesmo assim, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o respeitável Ipea, estima que “dos 5.569 municípios brasileiros, cerca de 98% têm potencial de ganhos na arrecadação com a reforma Tributária em um período de 20 anos, a depender dos impactos produtivos que ela provocar no crescimento do produto interno bruto (PIB)”.

Sim, são argumentos do próprio governo federal, e os ganhos a longo prazo e “a depender do crescimento econômico”. Um desenho e uma aposta destinados à prosperidade; apelo a estadistas, coisa mais rara na política em geral, em especial na atualidade. Será sempre difícil convencer prefeitos em véspera de ano eleitoral, cuja concordância em perdas imediatamente admitidas será explorada pelo oportunismo oposicionista espalhado em território nacional. Ninguém mais que os políticos sabe que "no longo prazo estarão todos mortos". 

Ainda assim, também aí há visões diferentes e rachaduras que podem favorecer a reforma. Concessões que devem ser feitas aos grandes municípios e estratégias, fundos (e emendas no orçamento) que podem amenizar demais contrariedades. 

Por fim, os principais meios de comunicação – antes mais poderosos que hoje, é verdade – demonstram em editoriais e edições cotidianas apoiar a reforma. Há certo alinhamento de interesses que, pelo menos aparentemente, tem isolado setores e personagens mais arredios à reforma, seja por dúvidas reais, interesses feridos ou por oportunidade em capitalizar politicamente ao se opor à reforma, como talvez seja o caso do governador de Goiás, o experiente Ronaldo Caiado.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), conversa com o deputado federal Sérgio Souza, durante reunião com os governadores e secretários de Fazenda, na Residência Oficial da Câmara, em 22 de junho. Foto: José Cruz/Agência Brasil
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), conversa com o deputado federal Sérgio Souza, durante reunião com os governadores e secretários de Fazenda, na Residência Oficial da Câmara, em 22 de junho. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Agora vai?

Ao longo de décadas, uma reforma realmente capaz de modificar o sistema de leis e regras tributárias nunca esteve tão madura: o Governo Federal a quer e seu principal ministro tem sabido se movimentar na mídia e nos fóruns de debate e conflitos. Há uma força mobilizadora no Congresso – a começar por Arthur Lira. E os estados já não estão tão resistentes.

Nunca os interesses de vários setores coincidiram dessa forma, nunca eventuais más intenções do Centrão e de seus capitães puderam ser tão bem aproveitadas. Será que “agora vai”? 

Embora nada possa ser afirmado peremptoriamente, pelo jeito sim. 

Mas, não tende a ser tão rápido ou simples quanto a empolgação e a inocência podem fazer supor. Haverá avanços, mas o mais provável é que haja um processo de idas e vinda, primeiro na Câmara, depois no Senado. Mais adiante, na Justiça. Uma liturgia que tende a se estender pelo resto de 2023 e avançar em 2024. 

Ainda assim, com chances, agora, mais que razoáveis. Pois, por quaisquer motivos que sejam, interessa a vários atores. Às vezes, a política é assim. Já havíamos esquecido disso.

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

 

#POLÍTICA
REFORMA TRIBUTÁRIA
ARTHUR LIRA
FRENTE AMPLA