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Análise - Segredos de polichinelos, o óbvio do Conselheiro Acácio

Quem acompanha o processo político brasileiro sabia da reunião em que Jair Bolsonaro, presidente da República, convocou comandantes militares para sugerir-lhes um golpe que impedisse a posse do eleito

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA28 de set. de 238 min de leitura
O então Presidente da República, Jair Bolsonaro durante reunião com o Ministro da Defesa e Comandantes das Forças Armadas, com a presença de Mauro Cid, no Palácio do Planalto, em Brasília, em 22 de fevereiro de 2019. Foto: Marcos Corrêa/Divulgação da Presidência da República
Carlos Melo, para Headline Ideias28 de set. de 238 min de leitura

Mauro Cid contou um segredo de polichinelo. Quem acompanha o processo político brasileiro sabia da reunião em que Jair Bolsonaro, presidente da República, convocou comandantes militares para sugerir-lhes um golpe que impedisse a posse do eleito, o presidente Lula. Buscava dar continuidade ao pesadelo de seu governo. 

Aqui e acolá, a imprensa divulgou entre notas e entre dentes, à meia boca. Ninguém duvidou. À história não falta verossimilhança, as tais fontes já haviam “delatado”. Faltava quem chancelasse a versão e colocasse a rubrica abaixo de um depoimento. Esse foi Mauro Cid, o faz tudo que viu e ouviu tudo. E tudo indica que Bolsonaro está lascado. A ampulheta de sua liberdade pode ter disparado. 

Quem não é cínico ou fanfarão não esperaria mesmo outra coisa que viesse de Bolsonaro. Nunca faltou ao ex-capitão reformado do Exército pelo menos esse tipo de transparência. Passou a vida especulando a hipótese de um golpe, um gesto de força com a morte de “pelo menos uns trinta mil”, como disse certa vez na TV. Nos últimos 30 anos, ultrajes como estes foram ditos com a naturalidade de quem vende bananas na feira. Vida e processo que seguem.

Primeiros toques do Conselheiro Acácio

Embora não seja novidade, é sim preocupante que os comandantes ouvissem isso – e pelo menos um deles assentisse. Bolsonaro se vai, mas seu hálito resta quente no cangote dessa gente. Ainda que a boa notícia seja a discordância do comandante do Exército, o fato é que as Forças Armadas do Brasil ainda não superaram o enganoso complexo de grandeza que a Guerra do Paraguai (1864-1870) lhes deu. Bolsonaro o reaviva na vaidade de cada um.  

Asseveram ser reserva moral, tutores da nação. Autoengano que todos pagam. Desta vez, contiveram-se somente porque foram contidos pela falta de apoio internacional, sobretudo, dos Estados Unidos, de Joe Biden. Com Trump, é possível, quase certo, que mandassem os freios “e os escrúpulos de consciência às favas” – para usar a expressão consagrada por Jarbas Passarinho – e encarassem a aventura.

Gostem ou não os antiamericanos do esquerdismo imortal, a democracia do Brasil, nesses dias de desconforto mundial, está atrelada à sorte do processo no norte do continente. A eleição norte-americana do próximo ano será um pouco a eleição de todo mundo – como já foi em 2020. Donald Trump não é apenas um desastre local. Estandarte internacional, é uma espécie de Voldemort que dá vida a dementadores reais espalhados pelo planeta.

E não seriam os velhos e novos aliados do PT – a Venezuela, a Rússia ou a China – que dariam suporte, ao Brasil ou a qualquer país do mundo, por um regime que não praticam em casa. Há mais semelhança entre Donald Trump, Vladmir Putin, Xi Jinping, Nicolas Maduro e Jair Bolsonaro do que supõem as aleivosias dos discursos improvisados de Luiz Inácio Lula da Silva.  

Disse-me outro dia um ex-ministro de Lula que, diante dos novos parceiros do PT, teme sentir saudades do velho imperialismo norte-americano. Não se trata de nostalgia, um chiste ou nota de sarcasmo. É mesmo um travo na garganta de quem tem juízo e tem medo. 

A eleição de 5 de novembro de 2024 é, portanto, uma importante variável, cuja interessada observação deve acompanhar as análises sobre o futuro político do país. Fala-se pouco, porém, a seu respeito disso, por aqui. Como se essas questões não estivessem articuladas num planeta em profunda transformação.

Este é também um segredo de polichinelo; trata-se de um elemento básico para quem pensa o cenário político do Brasil do próximos anos. Observações óbvias e singelas, dignas do Conselheiro Acácio: rasas, porém, sem o talento de Eça de Queiroz. 

Mas, necessárias, pois estão, pelo menos aparentemente, esquecidas num desvão qualquer da soberba dos que voltaram ao poder com a vitória da democracia e a eleição de Lula, em 2022. O reaparecimento do Conselheiro é sempre um mal sinal: indicador de que a desinteligência nacional chegou a um nível perigoso.

Outro óbvio que uiva nos lábios de Acácio

Outra que exige a sabedoria óbvia e convencional do Conselheiro Acácio é Gleisi Hoffmann, a presidente do PT. Não é de hoje que a deputada se esmera em agredir a coerência, a lógica e o bom senso. Os exemplos são vários e diversificados. Normalmente, o melhor é não lhe dar ouvidos. Mas, desta vez, ingrata, virou-se contra o Tribunal Superior Eleitoral, apontando um trabuco no próprio pé.

Externando críticas – sim, com certo grau de razoabilidade – a respeito do montante, segundo ela, “inexequível” das multas aplicadas pelo TSE aos partidos que não cumpriram a lei de cotas de mulheres e negros na eleição, a deputada atravessou a rua para escorregar num porco-espinho na outra calçada.

“Não pode ter uma Justiça Eleitoral que, aliás, é uma das únicas do mundo... Um dos únicos lugares do mundo que tem Justiça Eleitoral é no Brasil. O que já é um absurdo. E custa três vezes o que custa o financiamento de campanha para disputa eleitoral. Tem alguma coisa errada nisso. Talvez a gente devesse começar a olhar aí para ver o que a gente pode mudar...”.

Com boa vontade, pode-se relativizar, intuindo que a deputada apenas abriu um aposto -- “não pode ter uma Justiça Eleitoral que...” – e se perdeu nas vírgulas do advérbio “aliás”. Truncou o raciocínio que não fechou. Pode ser. Mas, o fato é que, com isso, ganhou tração e ânimo para dizer o que pensa, paradoxalmente, por pensar pouco: “é um absurdo” que o Brasil tenha Justiça Eleitoral. Seria essa a conclusão.

Gleisi é advogada, parlamentar de vários mandatos, foi ministra de Estado, é presidente do mais relevante e polêmico partido da história do Brasil. Deveria lidar melhor com as palavras, afinal, o mister de qualquer político. Ser prudente, qualidade que a sabedoria política exige. 

Mesmo assim, a dificuldade de raciocínio seria o menor dos problemas. Nesse quesito, no Brasil desta quadra histórica, a deputada e presidente do PT não destoa da imensa maioria de seus pares. É a hegemonia do baixo clero em sua forma obliqua de se expressar. “Insofisticada”, diria. Eufemismo destes tempos.

O problema maior está numa memória tão curta quanto errática como estratégia política. Foi a Justiça Eleitoral que garantiu a lisura do pleito eleitoral de 2022 e, portanto, a eleição e a posse do presidente Lula. É a Justiça Eleitoral que conteve e tem punido os abusos de Jair Bolsonaro. Não fosse ela, o voto seria em papel e a vontade do eleitor apenas uma miragem. 

É justamente sua falta que tem dificultado deveras o quadro norte-americano, dando assas a Donald Trump e permitindo absurdos em diversos distritos eleitorais controlados por republicanos radicalizados.

A deputada, portanto, “deu mole” e foram várias as reações à sua fala, na mídia e na política. Numa nota oficial emitida pelo TSE, Alexandre de Moraes lamentou “o total desconhecimento de uma presidente de partido”. Gleisi recuou: mais uma vez, “foi a imprensa que deturpou o que disse”, apenas porque jogou luz sobre o que ela realmente disse.  

Mas, causou mesmo espécie e até certo constrangimento daquela vergonha alheia que Flávio Bolsonaro também tenha se manifestado. Como um legítimo Conselheiro Acácio, disse o óbvio, sapateando no mangue do raciocínio desconexo e pantanoso da adversária. 

O Senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) concede entrevista no Senado Federal, em 2 de maio de 2023. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) concede entrevista no Senado Federal, em 2 de maio de 2023. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Percebendo o vacilo da presidente do PT, o senador acionou a Advocacia-Geral da União (AGU), saindo-se com esta:

“A presente representação não possui qualquer intenção de cercear opiniões e as liberdades e expressão de parlamentares que, inclusive, são invioláveis nos termos do Art. 53 da Constituição Federal. Porém, requer a este Órgão Técnico a apreciação da conduta descrita neste episódio específico que se reveste de especial gravidade por representar proposta de subtração da legitimidade do Poder Judiciário para a condução das questões eleitorais e, em último grau, a preservação da democracia”, afirmou o filho de Jair Bolsonaro, no melhor estilo do personagem velhusco de Eça de Queiroz. 

Literalmente, uma representação. A manifestação de Flávio Bolsonaro está repleta de cinismo e ironia. Manda recados com o gosto das vinganças vãs, e certo regozijo traquinas momentâneo. Mesmo assim, é de lascar. Escancara outro segredo de polichinelo: as principais lideranças políticas do país não estão à altura do desafio histórico. Não lhes falta experiência, pois isso até que têm, como é o caso de Gleisi. Mas, são um deserto de tino, estratégia, engenho e arte. Incapacidade de analisar contextos, para além de clichês, é esse, sim, o maior analfabetismo dos políticos.

Na campanha presidencial de 1994, arguido num debate sobre os CIEPS – projeto de educação integral que Leonel Brizola havia implantado no Rio de Janeiro –, Fernando Henrique Cardoso, após considerações superficiais a respeito das qualidades do programa, afirmou que se tratava de uma política cara. Ao que ouviu de pronta a resposta de Brizola, como uma tijolada na testa: “cara, senador, é a ignorância”.  

Cara, deputada, é a memória curta. A não percepção do jogo político e de sua dramaticidade, na política nacional e internacional. A falta de sagacidade, o constrangimento de ser alertado pelo óbvio. Caro, mesmo, é levar um sabão de Flávio Bolsonaro quando o assunto é democracia. 

Tudo fica bem mais caro quando são necessários conselheiros Acácios e o óbvio precisa uivar para ser notado.

Carlos Melo, cientista político. Professor Senior Fellow do Insper.

 

     

 

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