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A inelegibilidade de Bolsonaro e outra guerra nos bastidores do governo

Bolsonaro, ao final, ficará inelegível. Seus aliados afirmam que aprovarão anistia no Congresso. Mas a dinâmica individual é cruel:  cada um já se mobiliza pelo espólio eleitoral do inelegível. Enquanto isso, a guerra latente entre Lula e Arthur Lira fere inocentes

Carlos Melo , para Headline Ideias
#POLÍTICA30 de jun. de 238 min de leitura
O ex-presidente Jair Bolsonaro desembarca no aeroporto Santos Dumont e fala com jornalistas sobre o julgamento no TSE que pode torná-lo inelegível. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Carlos Melo , para Headline Ideias30 de jun. de 238 min de leitura

Nesses dias juninos de festa, entre um São João e outro São Pedro, o grosso do sistema político foi tomar quentão. Os mais relevantes, foram, porém, à Lisboa confraternizarem-se nos eventos do Instituto de Direito, do ministro Gilmar Mendes. A imprensa se abraça ao que restou em território institucional: o desgaste de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Bolsonaro, ao final, ficará inelegível. Nenhuma novidade. Seus aliados afirmam que aprovarão anistia no Congresso. Mas, a dinâmica individual é cruel: cada um já se mobiliza pelo espólio eleitoral do inelegível, não há grande vontade política de salvá-lo. No mais, é pouco provável que tenham maioria nas duas Casas. É ambiente de rei morto, rei posto.

O futuro do ex-presidente é impreciso por outros motivos: terá força para influenciar o processo, definir herdeiros e influenciar seus eleitores? Qualquer conclusão nesse sentido é especulativa. À parte dessa condenação no TSE, a corrosão do capital político de Bolsonaro ainda andará várias casas. Provavelmente, esta é apenas uma de muitas condenações.

Irá às redes e à mídia, é claro, para mitificar sua figura e importância. Afirma ter “bala de prata” para reagir. Antes de tudo, é necessário não esquecer que Bolsonaro é um pândego. Aprendeu a fazer política e a escalar a opinião pública criando expectativas irrealizáveis. É de sua natureza.

Mas, é verdade que o sistema democrático mundial vive em abalo profundo: o ressentimento com a política e as críticas à democracia tornam o planeta instável. Como Bolsonaro veste o uniforme das autocracias, se apega a esse clima e amarra aí suas esperanças. A eleição nos Estados Unidos, no próximo ano, será vital para o mundo e pode influir no quadro brasileiro. 

Adiantar o pesadelo, assustar crianças com monstros imaginários, é tática manjada. O cenário norte-americano requer mais detalhes e sofisticação analítica. O resto do mundo também: não faz uma semana, Vladimir Putin suava frio. O ambiente externo é volátil e qualquer aposta passa pelo wishful thinking. A crise é séria demais para nos darmos ao luxo de adivinhações. Analistas políticos não têm bolas de cristal. 

A verdade é que sem liderança e coordenação, a dinâmica política assume autonomia, vida própria. Serão os fatos novos que escreverão a história, no mundo e no Brasil. Se nada der certo, Bolsonaro diz que será garoto-propaganda de empreendimento imobiliário em Miami. Tem perfil. Os próximos meses dirão. 

Enquanto isso, a guerra latente

Enquanto isso, a guerra latente entre o presidente da República e o presidente da Câmara fere inocentes. Para ambos, nada melhor que ter Bolsonaro e demais aloprados sob os holofotes da mídia, enrolados no TSE e na CPI. O poder de um se dá na ordem inversa em que declina o do outro: o controle do orçamento da União é o centro da disputa. Assunto para os bastidores.

Competência ou sorte, a realidade tem se configurado favoravelmente a Lula. O presidente tem comprado tempo a bom preço: a economia melhora, o desemprego cai, o desalento recua. Inflação sob controle, os juros devem começar a cair a partir de agosto. Picanha na churrasqueira, cerveja na geladeira, os tais feel good factors tendem a melhorar a popularidade. 

Mesmo que, no longo prazo, esses indicadores se resumam a mais um “voo de galinha”, a sensação de bem-estar tende a projetar o presidente da República e elevá-lo à condição de importante eleitor nas eleições municipais de 2024. A eleição municipal altera o jogo político “nas bases”, onde deputados, senadores e governadores vão reforçar suas estruturas de caça aos votos, dois anos mais tarde: estar ao lado de um presidente popular pode fazer muita diferença.

Já Arthur Lira está sob chumbo grosso. Em Alagoas e na imprensa nacional, dia sim e outro também, novos esquemas de corrupção são revelados. Os constrangimentos envolvem ex-assessores, parentes e, supostamente, até seu próprio nome: “Arthur”, numa referência encontrada em bilhetinhos e anotações de repartição de recursos suspeitos.

Lira faz-se de vestal, é claro. Presidente da Câmara é sempre poderoso, mas é inegável que está exposto. Vulnerável à denúncias e disputas dos bastidores, o deputado se enfraquece, perde desenvoltura e o charme dos que “tudo podem”. Caso não retome a iniciativa, preservando a centralidade no cenário nacional, pouco provável que não seja mortalmente atingido. 

Para os setores econômicos que hoje o incensam, o papel mais importante de Lira é seu lugar na pauta econômica. Mas, na medida em que o arcabouço fiscal e a reforma tributária fluam e se realizem, suas ações perdem preço no mercado. O tipo de blindagem que hoje possui é, portanto, decrescente. Se retardar o processo econômico-legislativo, tanto pior: torna-se um ativo tóxico.  

Nesse quadro, a proteção direta de seus pares é fundamental. Mas, ela depende de sua capacidade de descolar recursos orçamentários vultosos que cheguem a prefeitos e vereadores, bases dos deputados do Centrão e seu entorno. “Quem quer rir tem que fazer rir”. 

Nísia resiste

Lira foi para o ataque, a vítima inocente dessa guerra pode ser Nísia Trindade, escolhida por Lula para comandar o ministério da Saúde, sonho do Centrão. Trata-se do mais relevante orçamento da União: R$ 183,8 bilhões e capilaridade em território nacional. Jóia da coroa.

Por enquanto, a voracidade fisiológica mira a Fundação Nacional da Saúde (Funasa). Extinta na estreia do novo governo, o Centrão a reinstaurou após acordo com o líder do governo, José Guimarães (PT-CE) para aprovar as medidas provisórias que davam novo contorno ao Executivo.

A Funasa atua em todo território nacional e lida com recursos destinados ao saneamento. Naturalmente, mobiliza significativos valores em obras nos municípios. Um enxame de parlamentares no Senado e na Câmara acorreu, então, aos projetos de lei para sua ressuscitação. Mesmo assim, a Fundação é pouco para o apetite voraz. 

O poder de compras e licitações da Saúde é imenso. Imensa também é a lista de escândalos que animaram sua existência ao longo do tempo: inúmeras máfias compuseram o noticiário a respeito do ministério. Interessante o espírito cívico que vai à cabeça daqueles que disputam seus cargos: controlar os pagamentos do Estado.

Nísia Trindade é, no entanto, uma técnica de qualidade reconhecida e ciosa de sua reputação. À parte de notícias plantadas para desgastá-la, já há um movimento em sua defesa: sua estrela sobe. Não será fácil afastá-la, mesmo que Lula o queira – o que, tudo indica, não ser o caso. 

Lula abraça sua ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante o lançamento do programa Mais Médicos, no Palácio do Planalto, em Brasília, em 20 de março de 2023. Foto: Evaristo Sá/AFP
Lula abraça sua ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante o lançamento do programa Mais Médicos, no Palácio do Planalto, em Brasília, em 20 de março de 2023. Foto: Evaristo Sá/AFP

Sem a cabeça do ministério, o resto do corpo também serve: “negociadores” buscam meios-termos. Mesmo no interior do governo, há pressão para que a ministra ceda espaços e compartilhe o poder dos orçamentos. Sob seu guarda-chuva, assumiria a responsabilidade pela ação do Centrão. Novata na política, a ministra não é boba. 

Aliás, tem se mostrado mais bem preparada e articulada do que seria de se supor. Diz contar com o apoio irrestrito do presidente – o que nunca é verdade: não há apoio irrestrito em política ou no futebol. Ainda assim, a confiança a tem fortalecido mentalmente. Mantendo a calma e o sorriso, não se deixa cair em ciladas nas diversas entrevistas que tem concedido. 

“Tenho noção da valorização do Ministério da Saúde, seu peso orçamentário e capilaridade”, diz, “entendo que haja desejos, pressões. Mas, estou segura de trabalhar em prol da reconstrução do SUS. É um ministério de grande rotatividade – às vezes 4 ministros em um ano. É um ministério sujeito a uma série de crises, também as crises advindas do interesse político que desperta”. E, assim, desconversa.

Parte da mídia nacional a comprou como exemplo de atuação, boa gestão e projetos. Os recortes feitos de suas aparições a favorecem e evidenciam que não se trata de uma simples técnica. Demonstra disposição de defender o posto e sua concepção de políticas de Saúde. É expressiva e segura. Tem realizações importantes para um ministério vilipendiado nos anos recentes. 

Hoje, mais que a maioria de seus colegas de ministério simboliza novos ares e um competente plano de comunicação. Se configura numa impossibilidade de mimo e negociação para o Centrão. Solução ou problema para o presidente da República?  

É cedo para afirmar que surge uma nova liderança. O gênio, porém, escapou da garrafa. Após tamanha visibilidade, é um caminho sem volta: recuar significaria a capitulação de Lula. Refém do apetite do Centrão, “bolsonarização sem bolsonarismo” do governo estaria dada. A própria história de Lula estaria comprometida. 

O presidente não será pusilânime a ponto de entregar a cabeça da ministra, deixando-se sequestrar. Lula não é Dilma, mas tampouco Bolsonaro: não lutará em mar aberto batalhas perdidas, mas também não cederá seus canhões ao inimigo. A guerra latente, nos bastidores e na mídia, seguirá em frente. 

Novos desgastes impostos a Arthur Lira tendem a surgir. Claro, as reações do Centrão serão inevitáveis quando as festas juninas acabarem e novas importantes votações voltarem à pauta. Novos dias, novas emoções. Salvem-nos, Santo Antônio, São Pedro e São João.

* Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

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