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"Adeus, Lula!", sucesso nos cinemas de Brasília

As condições em que Lula herdou seu primeiro governo são incomparáveis com as do presente. Como agravante, os modelos de formação de maioria no Congresso estão em colapso. A Lula caberia agir. Em desequilíbrio, qualquer sistema exige mudanças

Carlos Melo , para Headline Ideias
#POLÍTICA18 de mai. de 238 min de leitura
O presidente Lula cumprimenta apoiadores na rampa do Planalto no dia da retirada das grades de proteção do Palácio, em Brasília, em 10 de maio. Fotos: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República
Carlos Melo , para Headline Ideias18 de mai. de 238 min de leitura

Por desiludido com o que esperava e não obtém de seu governo, o presidente Lula anda “ansioso e triste”, informa a jornalista Mônica Bergamo. Vive tempos distintos dos mandatos anteriores, as “limitações para fazer valer sua vontade” são grandes, aliados não reagem aos estímulos de sempre, a sociedade está mais crítica e dividida, o mundo mais complexo. Sua ascendência e fascínio sobre políticos e instituições diminuíram – o Banco Central é apenas um exemplo. 

Como o passado é apenas bruma e lembrança, o petista parece um ser sem presente, no comando de um governo, talvez, sem futuro. Com efeito, acordar numa realidade cruel após sonhar, por toda noite, com o paraíso inexistente, “dá um bode danado”. Experiente, é claro que Lula deveria saber que o sucesso de ontem não garante o feijão de amanhã. Acreditava-se que estivesse preparado para o óbvio, mas parece não ser bem assim. 

As condições em que herdou seu primeiro governo e as circunstâncias da economia mundial são incomparáveis com as do presente. Deram suporte para que outras bem-sucedidas políticas fossem implementadas. Não se pode negar-lhe méritos políticos e pessoais ao conduzir o governo no combate à fome e na diminuição da desigualdade. Mas, como a Itabira de Drummond, hoje o Lula com a Faixa Presidencial de 2003-2010 é apenas um quadro na parede. E dói. 

A culpa por sua desilusão é apenas parcialmente sua. Ao seu redor amigos e companheiros também contribuíram para o banzo presidencial. Muitos fingem viver no tempo que se foi. Talvez até acreditem que vivam. Usam figurinos e gírias de época, pintam cenários que não mais existem. Forjam uma cena como se buscassem poupar a Lula de transformações que varreram o mundo em que aprendeu a ser e a estar. Uma atmosfera "Adeus, Lênin!" – quem assistiu ao filme compreenderá. Parece cômico, mas é, na verdade, triste. 

Transformação, ressentimento e fragmentação

Tenho insistido – para fixar – que uma revolução varreu o planeta e alterou o status quo de quase tudo: a economia, a sociabilidade, a política. A sociedade analógica desvaneceu ao mesmo ritmo em que um mundo digital de novas possibilidades se apresentou: novos modos de convívio, novos setores e modelos econômicos. Possibilidades exploração racional do meio-ambiente, maior respeito à diversidade. Setores antes humilhados ganhando representação e força. Isso é bom. 

Mas, também despertou enorme ressentimento em boa parte da população, atropelada pelo processo. Acordou setores e lideranças autoritárias que hibernavam entre o final do velho e no alvorecer do novo milênio. Sistemas políticos, econômicos e sociais restaram fragmentados em desequilíbrio. O que antes era encoberto, sutil e constrangido se libertou de amarras éticas: o fisiologismo, a truculência e a ignorância perderam modéstia e timidez. 

Reinventar a política é preciso, viver não é preciso. Mas, suspeita-se que Lula e seus companheiros tenham julgado bastar ser o que já foi. Na campanha eleitoral, o próprio candidato indicava isso ao evitar se comprometer com projetos e programas. A ambiguidade, seu centro gravitacional, atrairia tudo e todos. Venceu a eleição, mas interpretou mal o Brasil pós Bolsonaro?

Pacificá-lo e rearticular sua órbita seria – e ainda é – o desafio histórico até 2026. Promover o reencontro democrático e consolidar lideranças modernas, sem ressentimentos e com olhos de futuro é o que de melhor pode fazer. Um começar de novo, num mundo novo. Mas, a concertação nacional que se imaginava, até aqui não teve oportunidade. Lula a tem ignorado.

Houve enorme salto quando se pensa no país de apenas um ano atrás, como se, pelo túnel do tempo, o Brasil retornasse da idade média. No entanto, ainda não chegou ao presente. Algo parece estacionado em algum lugar do passado, a dois ou três quarteirões distante, parado num botequim qualquer, daqueles de radiola de ficha, no meio do caminho: um trago, um cigarrinho para parar o tempo de reminiscências melancólicas sobre outro mundo, outro lugar, outro Lula.

Efeito time-lapse

Em tempos de Metaverso e ChatGPT, vinte anos passam vertiginosamente. Enganosamente, parece ter sido ontem. Mas, o sentido prático de tantas transformações equivale a séculos: há vinte anos não havia, por exemplo, o smartphone, um dos símbolos da revolução. Efeito time-lapse: a vida flui frenética e exige novos saberes, nova dinâmica institucional, nova disposição para compreender e aprender o novo. Inteligência emocional e política renovadas. Sem isso, a ansiedade e a desilusão tomam mesmo o coração de qualquer sujeito. 

Não é proibido que líderes de ontem assumam o desafio do presente. Sem renovação política num mundo que abandonou a política, podem ser mesmo tudo o que resta para estabelecer algum equilíbrio num mundo instável, algum recomeço. Mesmo nos Estados Unidos, Joe Biden expressa isso. Liderança política não requer a precisão dos técnicos, a inteligência dos cientistas ou as incertezas dos analistas políticos. Exige apenas sensibilidade, adaptabilidade e pragmatismo. Elementos que têm faltado. 

No Brasil, há o agravante de os modelos de formação de maioria no Congresso, utilizados nas últimas décadas, estarem em colapso. A Lula – na verdade, a qualquer liderança que mereça esse título – caberia agir corretivamente: a deterioração do ambiente parlamentar é um dado mais que conhecido. Em desequilíbrio, qualquer sistema exige mudanças. Se implementá-las pela força é impossível e impensável, esperava-se que a sabedoria conquistada pela experiência e idade dessem as coordenadas de algum ajuste. Mas, não. São dois diabos: compreender o que se passa e saber o que fazer – nem cabelos brancos garante isso.

Soluções não passam exclusivamente pela vontade/desejo do governante ou pela imposição de um poder burocrático. Os sistemas se ajustarão pelas mãos da política. Qual política? Difícil dizer. A ansiedade de Lula é também um pouco da ansiedade geral e de cada um.

Certamente, não será pela inverossímil reedição do passado do sectarismo militante que vive, ainda, da nostalgia dos anos 1980, quando o país era jovem e os petistas usavam boinas, barbas e óculos redondos num mimetismo intelectual. A estética latino-americana de uma canção-lamento de Mercedes Sosa que já não soa espontânea. Tampouco será por meio da pequena política, fisiológica e paroquial do Centrão, num pragmatismo que nada mais será que capitulação. 

O dilema

O dilema é simples: encontrar o novo ou aquietar-se refém de um atraso fisiológico imemorial. Diferenciar-se do antecessor por uma penca de políticas públicas, pelo respeito ao meio-ambiente e aos direitos humanos é muito importante, mas não o bastante nem para Lula nem para o país. A condução da Grande Política também é uma forma de política pública – na verdade, condição sine qua nom das políticas públicas – que, mais que as outras, carece de formuladores. 

Governo e sociedade limitam-se a soluções localizadas e parciais pela simples descrença de que seja possível fazer algo por sistema político vencido pelo tempo e pelas circunstâncias. Desiste-se da peleja que revitaliza. Sem ela, não há esperança. Desperta-se a cada manhã com a comichão da ansiedade e o fantasma do fracasso. E frustrante. Não só para o presidente.

Isso tudo foi percebido a seu tempo e alertado. Lula o sabia bem antes da candidatura. O caminho mais razoável, diziam-lhe, seria buscar alianças para além da esquerda tradicional, do fisiologismo ou de um liberalismo ultrapassado. Despir-se de modelos ideológicos, do radicalismo de bar. Elevar-se como estadista que, sem ressentimentos, almeja o amplo e o moderno, preenchendo o vácuo deixado por Bolsonaro. Não se deixar comandar pelo vácuo. 

Em 2021 e no início da campanha, a tudo e a todos ouvia, deu inúmeros sinais de reconciliação com o país, com o passado e com o presente. Mas, aos poucos isso se perdeu. Seguro da vitória, fez ouvidos moucos. Isolou-se na nostalgia sua e de seus companheiros: o beco sem saída da política estreita. Quase perdeu uma eleição ganha. A fidelidade nem sempre é uma virtude. Pode mesmo ser um vício.

Adeus, Lula?

Embora o façam muito melhor que os bolsonaristas, petistas não lidam bem com críticas. Não admitem que reconhecer erros não anula acertos. Desconhecem que pequenos erros quando não corrigidos cobram preços elevados. Grandes erros, preços imensos. Uma conta volumosa que mais dia menos dia terá que ser quitada. Em virtude dos enganos – e, sobretudo, dos autoenganos – da eleição, da transição e do início desse mandato, talvez, já seja o caso de recomeçar. O governo ficou precocemente velho. 

O Presidente cumprimenta apoiadores na rampa do Planalto no dia da retirada das grades de proteção do Palácio, em Brasília, em 10 de maio. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República

Mas, ainda há tempo. Numa autoestrada veloz, gestos abruptos aumentam os riscos. Melhor buscar percursos seguros: uma reforma ministerial, talvez, já seja necessária. A formação de um "núcleo duro" de real poder e capacidade política e gerencial ainda não se deu e seus principais candidatos talvez estejam prematuramente desgastados. A necessidade de agir ruge como um leão. 

Melhor tarde do que mais tarde ou tarde demais. É preciso retirar o VHS que rola no vídeo cassete, “Adeus, Lênin!”/“Adeus, Lula!”. Deixar o passado no passado. Agora é o presente. “Os ombros suportam o mundo (...) chegou um tempo em que a vida é uma ordem, a vida apenas sem mistificação” (Drummond). Parafraseando uma canção: “se o mundo de Lula caiu, ele que aprenda a levitar”.

Carlos Melo, cientista político. Professor Senior Fellow do Insper.

 

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