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A primeira pior semana do governo Lula

As debilidades ficaram mais evidentes e já são admitidas por quem lutava contra evidências. Gente que apoia o governo, mas não é militante fundamentalista, demonstra desconforto

Carlos Melo, para Headline Ideias
#POLÍTICA27 de mar. de 239 min de leitura
"Lula deixou-se enredar numa estúpida escaramuça com Sérgio Moro". Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
Carlos Melo, para Headline Ideias27 de mar. de 239 min de leitura

Durante o governo de Jair Bolsonaro, a galhofaria nacional divertia-se ao sugerir otimismo diante da semana invariavelmente ruim. Ela seria “muito melhor que a próxima”. Foi um período em que a assertiva de que, “no Brasil, o fundo do poço é falso” foi mais que gracejo: foi um thriller de desventuras em série, “dia de fúria” de quatro anos. 

A semana que passou foi a pior do governo Lula. Talvez, indicando o início de um processo de desgastes do Executivo e do próprio presidente. Erros cometidos em série num curto espaço de tempo geram péssimas expectativas. Um clima de estupefação. 

O alerta soou: foi uma semana fora da curva ou o presente recorde negativo será sistematicamente batido ao feitio do precipício bolsonarista?

Difícil responder, o governo sequer completou cem dias. Há tempo para tudo. Para melhorar e até para piorar. A política depende da fortuna e da ação de atores que “fazem a história em circunstâncias que não são de sua escolha”. Não é questão de querer, tampouco sorte. Carece do engenho e da arte que têm faltado à política do Brasil.

As debilidades desde sempre apontadas ficaram mais evidentes e já são admitidas por quem lutava contra evidências. Gente que apoia o governo, mas não veste a camisa do militante fundamentalista, demonstra desconforto. Foi um festival de disparates, quase todos cometidos ou centralizados pelo próprio presidente da República.

Salvaguarda econômica em crise

Desde o início da campanha eleitoral em 2022, Lula foi compreendido como o centro racional do que seria o governo do PT, sua garantia de pragmatismo e moderação. Como disse em artigo anterior, “salvaguardas quando falham tornam-se o centro do problema”. Lula tem lutado o mau combate, perdido oportunidades e comprometido o que poderiam ser avanços importantes no campo da economia. Justo ele, a mais experiente liderança política em atividade no Brasil.

O presidente fragilizou seu ministro da Fazenda. Fernando Haddad expandia presença e credibilidade ao construir diálogo em torno do que chamou de “arcabouço fiscal”. Entabulou boas aparições nos meios de comunicação e no mercado, articulou com lideranças políticas a recepção serena ao projeto – que, sim, ainda poderá ser alterado pelo Legislativo. Mas foi imobilizado por forças “de dentro de casa”.

Haddad foi publicamente glosado por inimigos íntimos, na direção e na nomenklatura do PT. Também por lideranças da bancada federal e por seu colega da Casa Civil, o ministro Rui Costa – uma espécie de Dilma rediviva. Além do inoportuno seminário do BNDES – inconveniente no tempo e no espaço –, levado a efeito pelo sempre ativo Aloízio Mercadante. 

Tudo sob as vistas e o silêncio do presidente da República que, até onde se sabe, nada fez se não tergiversar sobre o assunto e ouvir o chiado da frigideira em que se fazia pururuca de Haddad. Se estivesse tocando piano, o ministro teria o assento puxado sem que pudesse interromper a execução da partitura. A dissonância e o mal-estar são indissimuláveis, ainda que o ministro tente. Que fazer?

Hesitação e timidez no jogo político

Na política parlamentar, Lula se viu enredado no jogo de poder de Arthur Lira. Sem demostrar capacidade de reação, possibilidade de anulá-lo ou atenuar sua ação, viu a questão do rito das MPs transformar-se na pressão da vez. Superada essa fase, outras dificuldades – que vislumbram novas facilidades – virão. 

É da natureza do Centrão testar a capacidade de reação e exaustão de suas vítimas. Trata-se de um jogo de paciência, mas também de força. O governo não pode se negar a jogar ou hesitar em agir. Tampouco deve esquecer que, às vezes, é necessário rugir para as raposas.

Embora deva ser usada com cautela, a disposição ao enfrentamento é elemento básico da política: acionar dispositivos de contenção e possibilidades de dissuasão é de seu mister. Em condições diferentes, sim, presidentes como Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso se interpuseram a figuras não menos poderosas do que Lira. Antônio Carlos Magalhães, por exemplo. Vetos cruzados geram indefinição, mas também podem promover a paz.

Até aqui, o Executivo e suas lideranças no Congresso não transparecem clareza do que fazer diante de ameaças que colocam a governabilidade refém de interesses paralelos. Uma crise entre as duas Casas do Legislativo é iminente. Se vier a ocorrer, paralisará o governo e despertará o sentimento de inação e antecipado fracasso. No jogo de poder de Brasília, Lula deixa transparecer que está sem cartas. O truco político requer dubiedade e alguma ousadia.

Erros não passaram despercebidos na oposição e no BC

Os erros e o torpor da semana foram evidentes e não passaram despercebidos pela oposição ou pelo Banco Central, hoje outro contendor do governo. Algumas brechas de reação se abriram justamente no momento em que estavam acuados. 

Na oposição, o ambiente quase despertou Jair Bolsonaro de sua caverna, na Flórida. Diante de toda desinteligência, o ex-presidente ameaçou voltar ao Brasil, entendendo ser este um bom momento para reapresentar-se. 

No BC, a equipe técnica parece ter concluído correta análise política, embora não devesse ser essa sua natureza. O Copom compreendeu que, sem a lição de casa do “novo arcabouço fiscal” e diante de tantas pontas soltas na articulação, teria desculpas para manter o contestado patamar de juros, atrasando ainda mais um pouco a retomada do desenvolvimento econômico.

No caso Sérgio Moro, Lula só tinha a perder. E perdeu.

Por fim, Lula deixou-se enredar numa estúpida escaramuça com Sérgio Moro. As consequências foram imediatas. Vitimizado e ajudado por uma investigação feita pela Polícia Federal – armação ou não –, o ex-juiz bateu o bumbo e obteve espaço franquiado nos mais relevantes veículos de comunicação. Não precisou ser fênix para renascer das cinzas

A despeito da infelicidade da fala inconsequente ou de Moro não ter o protagonismo autoproclamado no confronto com o PCC, o embaraço em que Lula se meteu voluntariamente revela problemas já apontados mesmo por quem torce pelo sucesso do governo, mas o acompanha com a objetividade e distanciamento necessários. Admita-se, há, no mínimo, embotamento político e dispersão de foco.

A incontingência verbal do presidente da República não é nova e tem se agravado nos últimos tempos. Sendo o político experiente de incontestável sagacidade, Lula não pode se permitir escorregões, excessos ou destemperos improdutivos e desgastantes. Mesmo nesses tempos alucinados de redes sociais, presidentes da República devem ser preservados. A “lacração”, tão apreciada nas redes, iguala oponentes desiguais. Um erro político digno de “Troféu Framboesa”.

Na provocação ao senador, ficaram claros a incapacidade de reação e o inadequado uso de oportunidades, como o fato de a PF, sob Lula, ter agido de modo impessoal e republicano. Nesses vazios táticos, somente Moro ganhou. Soubesse que Lula reagiria de modo tão precário, o ex-juiz o provocaria em dobro.

A irritação em relação ao algoz de ontem é compreensível e até o escorregão diante dos jornalistas pode ser relativizado. Mas o amadorismo é imperdoável. Classicamente, esse tipo de peleja é terceirizado a um porta-voz oficioso. Capanga, marionete, boneco de ventríloquo, pau-mandado, não interessa. O recado é dado e o presidente preservado. Surpreende que Lula tenha esquecido disso. 

A reação requer estratégia e sincronicidade. Tudo o que tem faltado. Há séculos, italianos dão dicas importantes sobre a temperatura dos pratos da vingança. Eles não podem ser servidos em meio a convescotes entre amigos. Por estupidez ou maldade, sempre haverá alguém que os colocará no forno de micro-ondas.

Colapso na comunicação

Repetidas entrevistas a meios de comunicação aliados contentam amigos, mas implicam em riscos desnecessários. Esse recurso só tem trazido dissabores. Sentindo-se entre velhos camaradas, a informalidade de Lula tende a tangenciar riscos e trazer constrangimentos. Jânio Quadros advertia que intimidade resulta em confusão ou filhos. Lula passou da idade para os dois.

Evidente a ausência de política de comunicação mais ampla. A Secretaria de Comunicação da Presidência mostra-se limitada à lógica militante e a relações restritas ao campo da esquerda. Ao contrário do primeiro governo – com Luiz Gushiken – , a Secom atual dá indicações de desconhecimento do potencial que possui diante de toda a mídia nacional. 

Pelo menos na aparência, oscila entre o estreitismo político e o deslumbramento com o poder. Disposição para fechar-se, também agora, em gabinetes de militância ideológica, além, da busca de visibilidade e autopromoção do ministro-secretário que, como no passado recente, alimenta-se de beligerância e disposição ao bate-boca com jornalistas. 

A soma da semana subtrai capital político, pessoal e comercial

Tudo somado, o resultado da semana é negativo pois subtrai erros acumulados de ganhos parcos e de um capital político ainda limitado pelo antipetismo. O processo culminou na preocupação com o estado de saúde do presidente e no desapontamento com o cancelamento da estratégica viagem à República Popular da China. 

A pneumonia diagnosticada em Lula revela uma agenda alucinante de viagens, cujo cansaço e o esgotamento são naturais. É evidente que o que se busca é aumentar sua popularidade para fazer frente às pressões no Legislativo. Já escrevi a respeito. O próprio presidente exige esse tipo de atividade. Mas, alguém precisa saber colocar freios nisso. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

Como resta evidente, não mais se trata de um garoto – mesmo com 20 anos a menos seria desgastante. São atividades estressantes pela distância dos deslocamentos e pelos riscos em que implicam.  Não raro, sem efetivos dividendos políticos ou econômicos. Posto no corpo-a-corpo de atividades abertas, Lula fica sujeito a perigos reais, mas, sobretudo, a escorregões de comunicação, como se viu. Nas confusões, tiros no pé que são inevitáveis.

Já o cancelamento da viagem resultou num anticlímax que frustrou expectativas de empresários de diversos setores, como também da diplomacia brasileira e de parte da opinião internacional que gostaria de ver Lula interagindo com Xi Jinping.  É claro, além de protelar a retomada do pragmatismo no andamento de importantes projetos de parceria com o gigante político e econômico, maior parceiro comercial do país.

Foi essa a semana. O tempo dirá se terá sido melhor que as próximas. Seu mérito é que o constrangimento explicita problemas que vinham sendo negligenciados pela euforia ainda remanescente da vitória eleitoral. De algum modo, uma criança surgiu do meio do público e gritou “o rei está nu”. Se não nu, o certo é que Lula está desguarnecido de vestimentas adequadas e de recursos os mais triviais. Está exposto ao próprio sentimento de invulnerabilidade.

A despeito da retomada de importantes políticas nas mais diversas áreas, antes de completar três meses, o governo carece de clareza de ação – mais do que objetivos – , de uma ordem unida, de coesão interna, de liderança estratégica para além da carismática. Um governo disposto a precipitar disputas internas e autossabotagens potencialmente capazes de abrir um ciclo interminável de semanas ruins. Piores, uma após a outra. E, claro, matéria-prima para piadas e desgraças.  

Carlos Melo, cientista político. Professor Sênior Fellow do Insper

 

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